Quando o privilégio é privilegiar

Fotos: Arquivo pessoal / Álbum de família
Na foto de cima, meu irmão, Daniel, com pose e uniforme de He-man, aos 6 anos e eu aos 2, entre nós, nosso pai, Manuel. Na foto de baixo, quando eu tinha 6 meses, as mãos de meu pai me levantam no ar.
Na foto de cima, meu irmão, Daniel, com pose e uniforme de He-man, aos 6 anos e eu aos 2, entre nós, nosso pai, Manuel. Na foto de baixo, quando eu tinha 6 meses, as mãos de meu pai me levantam no ar.

– Dedico esta crônica ao meu pai Manuel, esperando que todos os verdadeiros pais do mundo sintam-se homenageados.

Um herói sem fantasia, que jamais foge à luta, batalhando de forma incansável com todas as armas de que consegue dispor. Um herói que, se pudesse, requereria o privilégio de morrer antes dos filhos só para não ter que vê-los perder o privilégio da vida. E, se preciso fosse, não titubearia em morrer por eles, mas sonha mesmo é em poder viver para, com bandeirinha em punho, vê-los alcançar vitórias mais privilegiadas que as dele.

Todo pai a quem se possa chamar pai é herói. Os termos são quase sinônimos e isso não tem nada a ver com biologia. Assim como para ser mãe não basta colocar no mundo, um pai também não é simplesmente aquele que tem seu nome em nosso DNA. Certas vezes, esse é sim pai, mas há casos em que, infelizmente, não merece em nada o título. No entanto, ao nascer, todos mereceriam ter um pai. E há quem opte por criar os filhos renegados, são os pais adotivos. Mas adotar, paradoxalmente, também nem sempre significa dar amor. E um pai ama.

Há o caso do padrinho, que, escolhido para ser um segundo-pai, às vezes some do mapa, mas também acontece de se tornar o primeiro. E há ainda aqueles que com o tempo percebemos que podemos chamar de pai, mesmo que não seja padrinho, não haja certidão de adoção e nem compartilhem de nosso sangue, mas que compartilham conosco suas mais incríveis aventuras e tudo que a vida os deu de melhor. E um pai compartilha sua luz.

Vai daí que há muitos tipos de pais. Todos, por definição, igualmente heróis.

Aqueles que, além de pais biológicos, são também verdadeiros pais, ainda que sejam os mais completos, não são tão facilmente identificáveis. Numa praça que reúna os diversos tipos de pai interagindo com seus filhos, não pense que é assim tão fácil identificar quem tem laços sangüíneos com quem. As semelhanças físicas podem até ajudar, mas não se leve pelo jeito de ser – isso pode confundir bastante. Acredite, a convivência é capaz de tornar duas pessoas extremamente parecidas, há quem diga que até fisicamente. E um pai convive. Pode não ser uma presença diária, pode nem sequer ser mensal, mas, de longe ou de perto, um pai acompanha.

É fácil perceber dentre os vários pais a vontade de oferecer ao filho o privilégio de ir mais longe do que eles foram. Isso porque, dentro do espírito paternal, o maior privilégio é privilegiar. Ao pai biológico, porém, único capaz de ver crescer levando o seu nome um fruto de seu sangue (e quiçá de seu amor), reserva-se uma sensação de continuidade ímpar. Qualquer pai pode em muitos momentos olhar pro filho com esperança de que ele dê continuidade à determinada causa ou até, como tantas vezes acontece, sonhando com que ele siga a carreira que é tradição na família… Mas, se for mesmo um pai, certamente não fará disso uma imposição incondicional… Caso o filho não queira continuar nada, queira ir longe da sua maneira, criando tudo novo, esse pai, elogiando ou criticando, estará de alguma forma demonstrando apoio. Porque um pai sempre escolhe apoiar.

Escolha difícil e inusitada têm alguns pais adotivos. Um berçário repleto, um jardim cheio de crianças: – “E, agora, quem vou chamar de filho?”. Mas a vida, com sua sabedoria maternal, trata de indicar quem o vai chamar de pai.

Mais do que fazer escolhas, ser pai é renunciar às próprias escolhas. É escolher privilegiar e sentir-se privilegiado com isso. Não se trata de ser escravo, nem é isso que um bom filho quer do pai. Mas qualquer relacionamento sincero passa por saber ceder, passa por querer ceder, se isso for o melhor para o ente querido. E pais não poderiam agir diferente disso com seus filhos. Todo pai precisa se manter firme em algumas posições que lhe são caras, até por uma questão de coerência, mas também percebe a hora certa de ceder e ao fazê-lo por seguir seus sentimentos não fracassa, ao contrário, dá uma das mais altas e sublimes demonstrações de carinho, ao abrir mão de si mesmo para cuidar dos filhos. Sim, um pai cuida, e como cuida, e para fazê-lo bem, muitas vezes, é preciso deixar de lado antigas idéias e, em algumas situações, esquecer-se das próprias vontades. Na certeza de que, em certa altura da vida, os bons filhos se tornam pais de seus pais e acabam por fazer o mesmo.

Tá aí colocado um novo tipo: os filhos que se tornam pais de seus pais. Isso sem falar no avô-pai, tio-pai, irmão-pai, etc., aqueles outros familiares que às vezes também se tornam nossos pais. E há ainda o amigo-pai, a que fiz referência no início da crônica. Aquele que, sem nos ser ligado nem pelo sangue nem pela lei, nos olha com brilho paternal, sonhando com nossos vôos e voando com a gente.

Voar é sonho antigo do ser humano. Mas se você é um pai de verdade (de qualquer um dos tipos, ou até mais do que um, ou todos) suas asas, ainda que não apareçam, estão aí prontas para aconchegar e defender os filhos em qualquer perigo. Quer mais super-poderes do que isso? É melhor parar de esconder a fantasia, o mundo já sabe que você é um herói.

Ana Helena Ribeiro Tavares
01/08/2008

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Pasargadeando I

Foto: Ana Helena Tavares

– “Diálogo” poético com Manuel Bandeira – aspas nele! E negrito nos trechos de minha autoria.

– Dedico esse “diálogo” à minha tia Lourdes, que alimenta o beija-flor da foto e é, ao mesmo tempo, um necessário toque de realidade nesse meu mundo de pasargadeios…

Afirmo a todos que ganharam lugar nobre em meu coração:
No início, as aparências (falso espelho que embaça verdades)
Não eram de meu agrado…

Bobagem acreditar que o que fica é a primeira impressão!
Antes de muitos relacionamentos humanos (amores, amizades)
Houve um pré-julgamento equivocado.

“A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.”

Deus é a única perfeição.
E eu, criatura, já quis reunir:
O carisma de minha mãe
A honestidade de meu pai
A paciência de meu irmão
A memória avantajada de um de meus tios
O pragmatismo do outro
A sagacidade de uma de minhas tias
A sensatez da outra
A perseverança de minha avó materna
A vitalidade da outra avó
A alegria contagiante de meu avô materno
E o empreendedorismo do outro avô…
Ufa, hoje quero ser quem eu sou!

“Não quero o êxtase nem os tormentos.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.”

Garganta inflamada, vômito, diarréia e congestão nasal.
O corpo mais mole que uma maria-mole.
– (Atchim) Doutor, estou (atchim) mal (atchim)!
– Sente-se aqui. Abra a boca. Abra mais.
– Ahhhhhhhhh…
Caleidoscópio em punho, medidor de pressão, exames rápidos.
– É uma virose!
– Mas, doutor, minha cabeça lateja e estou explodindo de febre…
– É uma virose, já lhe disse! Vá à farmácia e compre isso e isso. Ah, e também isso.
……………………………………………………………………………………………………………………………
Conheço gente que foge de médico como gato de água.

“Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
…………………………………………………………………………………………………

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

Assim como tango lembra nostalgia
Nostalgia me lembra a pureza da infância

E foi das lembranças dessa fase
Que tive hoje a prova do passar do tempo
Ao observar brincando na calçada
A filha de uma amiga minha de infância
Pensei:
É a cara da mãe!
Corrigi:
É a cara da mãe
Quando a mãe era criança…
Óh, Deus, se a tal mãe tem a minha idade
(conclusão óbvia)
O meu rosto também mudou!
Pausa…
Em frente ao espelho a verdade me saltou aos olhos.

Uma mudança natural, que não me entristece.
Minha infância foi de grande alegria
E recordá-la me fez ganhar o dia.

“Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .”

Vida num sítio retirado:
Na auto-estrada carros vêm e vão
Sabe-se lá de onde, pra onde
Na varanda, moradores conversam alto
Cachorros brigam por ciúmes
O beija-flor, indiferente a tudo, vem se refrescar…
Dos lados o verde que tão bem cheira,
Por cima o azul sem fronteira,
Pela frente o mundo, pra quem o queira.

“Jardim da pensãozinha burguesa.

Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.”

Sociedade cheia de rapapés!
Pra que?
Dentro nada, fora dez?

“Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.”

Branco
Prepotente
Mau-caráter
Querendo sempre levar vantagem
Se mostra a fineza em pessoa…
Sobrinho-neto de sardinheira, só pensa em caviar.

Imagino-o tentando entrar no céu:
– Sai da frente que eu cheguei!
E São Pedro sem meias palavras:
– Soldados!!!!!

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

O bicho, meu Deus, era um homem.”

Crianças esquecidas em carros
Atiradas pela varanda
Arrastadas pelas ruas
Baleadas por quem as tinha que defender
Abandonadas em rios
Jogadas no lixo

Há homens, meu Deus, piores que bicho!

“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco”

Por que tanto noticiam becos, trevas, desgraças, escuridão, a morte?
– O que eu vejo é a vida!

“João Gostoso era carregador de feira livre
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”

Maria tinha cinco filhos
E era esposa de um trabalhador
Uma manhã acordou sem ser chamada
Cozinhou
Lavou
Passou
Depois se ajoelhou na igreja da favela
E chorou o inexplicável…

“Assim eu quereria o meu último poema.
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”

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