Os óculos quebrados

Foto: Ana Helena Tavares, em 23 de Abril de 2009

Para minha amiga Isabela Guedes que, passeando comigo pelo calçadão de Copacabana, reparou que mais uma vez os óculos de Drummond estavam quebrados e me disse: “Você devia escrever algo…”

Eu vejo tudo desregrado
Numa sociedade tão cheia de louça
Veja que incoerência, meu caro…
Fazem exigência e têm os pés na poça

Mas vejo por um prisma distorcido
O meio me deu óculos e ele mesmo os quebrou
É tanta informação passando em meu tecido
Que há dias em que não sei nem quem sou

Vejo o povo colocar as leis e quem as aplica numa margem, ou seria um pedestal?
E mandar o espaço urbano, seio das causas sociais, pra outro rio…
Quem me dera que isso fosse só uma miragem hibernal!
Daqui a uns anos, eu não quero ver meu país chorando em lugar frio

A moda é ser hipócrita, virou sonho de consumo
Hipocrisia resolve tudo, dá status, virou troféu
Pro meu olhar qual pode ser o melhor rumo
Senão ficar querendo admirar o céu?

Mas poetas gostam de observar a sociedade
Por isso Drummond sentava-se de costas pro mar
Só me resta uma grande curiosidade:
Quantos juízes ele terá visto passar?

25 de Abril de 2009,
Ana Helena Tavares

Os óculos quebrados no Recanto das Letras

Os óculos quebrados no site “O melhor da web”

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Com licença, sociedade, que eu vou sair por aí com a minha caneta

Foto: Ana Helena Tavares
E a câmera balançava com o ônibus...

O ônibus balançava, era hora do rush, mas os passageiros não eram muitos. Ou seria a platéia?

Quem ali, ao passar por uma engarrafada Praça da Bandeira, ousaria imaginar que seria brindado com show exclusivo em pleno túnel Santa Bárbara? O artista? Um rapaz para quem a vida parece ter dado boas chances, mas que resolveu pedir licença à sociedade e sair por aí com seu violão.

A platéia era pequena e o barulho do túnel abafava a voz mansa do jovem rapaz, mas quem disse que isso era problema para ele? Trazendo nos pulmões mais coragem do que voz – motivo pelo qual eu o ouvi – o que ele queria mesmo era fazer uma pergunta àquele ônibus, ao mundo e, principalmente, a ele próprio: “Que país é este?”

Não ganhou muitos aplausos, muitos na pequena platéia dormiam (ou será que fingiam dormir achando que era assalto ou que o artista iria “passar o chapéu”?).

Chapéu? Ele não tinha e não passou. Não era dinheiro que queria. Queria “apenas mostrar seu trabalho”, como fez questão de dizer ao pisar naquele ônibus.

Assalto? Longe disso, ele só queria paz. Mas, por ironia do destino, naquele mesmo final de tarde de segunda-feira, 23 de Março de 2009, em que aquele rapaz entrava num ônibus em Botafogo para fazer lembrar Nietzsche – “Temos a arte para que a verdade não nos destrua” – Copacabana vivia momentos de violência e tiroteio.

Num país que desde sempre foi marcado por tantos contrastes, é extremamente complicado responder com exatidão à pergunta-título da música. Mas, certamente, o Brasil e o mundo precisavam de muito mais gente disposta a apostar na arte como forma de sacudir a realidade, desconstruindo o dia-a-dia e criando, assim, novas possibilidades futuras. Por isso, sei que não fui a única naquele ônibus a aplaudir o rapaz. Renato Russo estava lá e o aplaudiu junto comigo.

Posso imaginar quantos naquela “seleta” platéia taxaram o rapaz de louco. O rapaz e a mim. Já imaginaram alguém no fundo do ônibus sacando uma máquina fotográfica (tentando tirar fotos com um ônibus que não parava de balançar) e ainda aplaudindo no final?

Pois bem, se atitudes como a do rapaz e reações como a minha são loucura neste mundo, eu, que sei que é da seiva de loucuras como estas que nasce o entusiasmo para se lançar o desafio proposto por Nietzsche, não quero ser normal.

Quero pedir licença à sociedade e fazer da caneta o meu violão.

29 de Março de 2009,
Ana Helena Tavares

Com licença, sociedade, que eu vou sair por aí com a minha caneta no Recanto das Letras

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