Com licença, sociedade, que eu vou sair por aí com a minha caneta

Foto: Ana Helena Tavares
E a câmera balançava com o ônibus...

O ônibus balançava, era hora do rush, mas os passageiros não eram muitos. Ou seria a platéia?

Quem ali, ao passar por uma engarrafada Praça da Bandeira, ousaria imaginar que seria brindado com show exclusivo em pleno túnel Santa Bárbara? O artista? Um rapaz para quem a vida parece ter dado boas chances, mas que resolveu pedir licença à sociedade e sair por aí com seu violão.

A platéia era pequena e o barulho do túnel abafava a voz mansa do jovem rapaz, mas quem disse que isso era problema para ele? Trazendo nos pulmões mais coragem do que voz – motivo pelo qual eu o ouvi – o que ele queria mesmo era fazer uma pergunta àquele ônibus, ao mundo e, principalmente, a ele próprio: “Que país é este?”

Não ganhou muitos aplausos, muitos na pequena platéia dormiam (ou será que fingiam dormir achando que era assalto ou que o artista iria “passar o chapéu”?).

Chapéu? Ele não tinha e não passou. Não era dinheiro que queria. Queria “apenas mostrar seu trabalho”, como fez questão de dizer ao pisar naquele ônibus.

Assalto? Longe disso, ele só queria paz. Mas, por ironia do destino, naquele mesmo final de tarde de segunda-feira, 23 de Março de 2009, em que aquele rapaz entrava num ônibus em Botafogo para fazer lembrar Nietzsche – “Temos a arte para que a verdade não nos destrua” – Copacabana vivia momentos de violência e tiroteio.

Num país que desde sempre foi marcado por tantos contrastes, é extremamente complicado responder com exatidão à pergunta-título da música. Mas, certamente, o Brasil e o mundo precisavam de muito mais gente disposta a apostar na arte como forma de sacudir a realidade, desconstruindo o dia-a-dia e criando, assim, novas possibilidades futuras. Por isso, sei que não fui a única naquele ônibus a aplaudir o rapaz. Renato Russo estava lá e o aplaudiu junto comigo.

Posso imaginar quantos naquela “seleta” platéia taxaram o rapaz de louco. O rapaz e a mim. Já imaginaram alguém no fundo do ônibus sacando uma máquina fotográfica (tentando tirar fotos com um ônibus que não parava de balançar) e ainda aplaudindo no final?

Pois bem, se atitudes como a do rapaz e reações como a minha são loucura neste mundo, eu, que sei que é da seiva de loucuras como estas que nasce o entusiasmo para se lançar o desafio proposto por Nietzsche, não quero ser normal.

Quero pedir licença à sociedade e fazer da caneta o meu violão.

29 de Março de 2009,
Ana Helena Tavares

Com licença, sociedade, que eu vou sair por aí com a minha caneta no Recanto das Letras

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Poema limpo

“Diálogo” poético com Ferreira Gullar. A Gullar as aspas que são de Gullar (os trechos de minha autoria aparecem em negrito).

– Este “diálogo” é, claro, uma homenagem a Ferreira Gullar. Os trechos de minha autoria dedico ao meu amigo Antônio Carlos Secchin, que mergulhou recentemente na obra de Gullar e a quem devo alguns bons ensinamentos muito importantes para a minha formação poética.

“Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.”

Do mesmo modo que te fechaste ao amor
fecha-te agora ao ódio
que sem o amor não vive
que não é pomba livre.

“Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda”

Do mesmo modo
que à paixão te entregavas
e só vias chamas
e te encontravas nelas
sem pensar
em dramas

“Deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas”

Deixa que a cor apareça agora
sem embace
sem demora

“e em tua carne vaporize
toda ilusão”

e no suor de sua camisa
faça brisa

“Que a vida só consome
o que a alimenta.”

Que a vida só não some
pra quem a inventa.
E as partes não se traduzem
a qualquer vento.

“Não tem a mesma velocidade o domingo
que a sexta-feira com seu azáfama de compras
fazendo aumentar o tráfego e o consumo
de caldo de cana gelado”

Não tem a mesma força o solitário
que o grupo com seus elos sem preço
fazendo diminuir a sensação de impotência
de vitrines feitas de aparência

“nem tem
a mesma velocidade
a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
a penetrar soturnamente o rio”

nem tem
a mesma força
o soco e o afago
com seu casaco encorpado e caloroso cobertor
a proteger o que não vê

“Melhor se vê uma cidade
quando naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)”

Melhor se vê uma pessoa
Quando naquela mente
onde agora crescem ervas daninhas
girassóis já sorriram em coro
(e quase se sente o aroma
e o frescor
que nos belisca a lembrar do passado)

“Mas
se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória”

Mas
se assusta penetrar
nas profundezas de um cérebro sem eira
que não se reconhece no espelho
pro qual tanto faz o azul e o vermelho
arrastado pelo chão em eterna bananeira
a isso
responde a noite
que
com sua iludida e incolor luneta
refaz o dia
jovial e sem caneta.

21 de Novembro de 2008,
Ana Helena Ribeiro Tavares

Para ver o dia em que declamei para Gullar estes versos, clique aqui.

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