
Por Ana Helena Tavares, jornalista, editora do QTMD?
Hoje general reformado, Bolívar Marinho Soares de Meirelles é um dos remanescentes entre os militares que foram cassados pela defesa da legalidade e pela oposição ao golpe de 64. Além disso, é mestre em administração pública com a dissertação “Conflitos políticos e ideológicos nas Forças Armadas Brasileiras” (disponível neste link). Nesta entrevista ao QTMD?, o general Bolívar diz não encontrar nenhuma possibilidade de comparação entre a conjuntura de hoje e a da década de 60.
Para ele, “as Forças Armadas não acompanharão Bolsonaro num golpe”. Mesmo porque, garante, “golpe de Estado não é dado somente por militar”. Bolívar acredita que a classe dominante, nesse momento, “não está bolsonarista” e percebe que o presidente vem perdendo apoio entre seus antigos apoiadores. “Bolsonaro vai entrar 2022 de perna quebrada”, vaticina.
A seguir, a entrevista em detalhes:
Ana Helena Tavares: O senhor vê algum paralelo entre o que vivemos hoje no Brasil e o que o senhor viveu na sua juventude na década de 60?
Bolívar Meirelles: Não há nenhuma possibilidade de comparação da conjuntura política atual com a conjuntura dos anos 60. Começa logo pelo fato de que nós não vivemos uma situação de guerra fria. São vários polos que se colocam hoje no tabuleiro.
Houve essa tentativa de golpe do Bolsonaro (no 7 de setembro) que já era para ter resultado no Impeachment dele. O poder judiciário e o poder legislativo já deveriam ter afastado esse cidadão do poder.
Foi abortada. Ele poderia querer. Tinha um grupo de rua mais organizado do que nós que somos contra o governo dele. Somos quantitativamente maiores, porém com menos organização. O jargão ele vai buscar em Plínio Salgado nos anos 30: Deus, Pátria e Família. Isso é integralismo, extrema direita.
Digo sempre que os golpistas têm duas mensagens: uma é o “mar de lama”, como se eles não fossem corruptos. Está aí a prova desse governo desse capitão corrupto, família corrupta. Eles não iam fazer nada de corrupção e eles estão fazendo. Por outro lado, os golpistas agem a partir de uma posição visceralmente anticomunista, que no Brasil costumo denominar de anticomunismo larvar, porque é um anticomunismo tão imbecil que não vê que o Brasil não tem as menores condições sequer de fazer uma revolução socialista. Não há condições, mas eles insistem nisso tentando descobrir anticomunismo até no Lula.
Sempre votei no Lula no segundo turno, porque votava no Brizola no primeiro e Lula era o “menos pior” diante das ameaças neoliberais. Mas aí ele toma posse e foi o que mais beneficiou banqueiros e usineiros. Então, não tem nada de comunismo na cabeça do Lula. No livro “O que fazer?”, Lenin aponta justamente a diferença entre uma posição revolucionária e uma posição sindicalista. Esse livro é fundamental para entender que o Lula não tem nada de comunista. E o PT é um social-democrata devagar.
Como também social-democracia no Brasil é uma brincadeira de mau gosto. O chamado “Partido da Social-Democracia”, o PSDB do Fernando Henrique, foi o que entregou os minérios de ferro e abriu a Petrobrás. O que motivou à época o capitão Bolsonaro, em seu falso nacionalismo, a dizer que queria o FHC morto, porque ele abriu as comportas para o capital estrangeiro. Mas o que faz hoje o governo do capitão Bolsonaro com esse Paulo Guedes? Estão tentando vender todo o patrimônio do povo brasileiro!
AHT: Há alguma chance de Bolsonaro ter sucesso numa nova tentativa de golpe?
BM: Acho que não há chance. E se ele desse esse golpe ele não teria sustentabilidade para permanecer numa situação de golpe. Por quê? Porque golpe de Estado não é dado somente por militar. Ele é demandado, fundamentalmente, pelas classes dominantes. A classe dominante está dividida. Não está bolsonarista.
Nós temos visto esses manifestos saindo recentemente… Então, a classe dominante não está com ele. As camadas médias altas, tradicionalmente golpistas quando se unem, não estão com ele. Ele está se esvaindo. As Forças Armadas estão divididas. A Igreja está dividida. Quem está com ele são essas igrejas neopentecostais, mas a Igreja Católica não está com ele, os espíritas não estão, os evangélicos de igrejas tradicionais não estão. Então, há uma divisão.
E não é o foco hoje do império norte americano ter um governo ditatorial do capitão Bolsonaro no Brasil. Seria até um problema a mais para o império norte americano. E ele não tendo essas forças coesas não há como se manter no poder, ainda mais numa situação de crise. Crise da pandemia, crise da economia.
Nós vivenciamos um momento hoje de perda substantiva (do poder aquisitivo), um desemprego muito grande. O esvaziamento do valor da moeda. Isso aí é impressionante. E qual é a segurança para os investidores virem para o Brasil nesse governo bolsonarista? Eu moro aqui em Ipanema, saio e vejo uma miséria absoluta. Mendigos… Três pedintes por quarteirão buscando esmola. Por que a ditadura, iniciada no golpe de 64, acabou? Porque o Brasil entrou numa crise econômica profunda.
Hoje, eu vejo um quadro quebrado. Tem muito mais gente do povo pedindo o Impeachment do que a permanência do Bolsonaro ou querendo ele como ditador. Não vejo condições concretas nem ao nível objetivo nem subjetivo, porque ele não tem organização suficiente para desencadear o golpe.
Ele blefa com as Forças Armadas. As Forças Armadas, no meu sentido, não acompanharão o capitão Bolsonaro num golpe. Não acredito que o Exército do qual fiz parte seja tão venal a ponto de ser todo comprado em troca de migalhas. Acho que a maioria está preocupada com as instruções e trabalhos internos.
AHT: E as polícias militares não lhe preocupam? O que acha de algumas análises que têm sido feitas apontando risco de insubordinação nas polícias?
BM: Com relação aos policiais militares, também acho que a maioria procura trabalhar. Além disso, tem as milícias bandidas. Veja que eles conseguiram queimar até o nome milícia, porque você sabe que na Espanha houve uma milícia revolucionária anti-franquista. E as milícias da Venezuela têm uma característica completamente diferente desses milicianos daqui. Lá, elas são complementares às Forças Armadas.
Eu não acredito que as polícias tenham força para um golpe, porque acho que o Exército está dividido, não acompanha esse capitão. E eu discordo de um termo que tem sido usado muito pelo coronel Pimentel (oficial da reserva que têm dado muitas entrevistas). Ele fala em “partido militar”. Ele criou essa hipótese de um partido militar que vai jogando para se manter. Eu discordo. Não existe essa coisa. Partido ou é de classe social, ou é burguês, ou é revolucionário ou, ainda, envolve jogos de interesses monetários. Mas não um partido de uma categoria. Se ele vê um partido militar, daqui a pouco vai ter partido dos juízes, dos médicos, etc… Acho que não existe essa coisa.
O Pimentel é bom porque ele vem denunciando muitas coisas. E ele ficou muitos anos no quartel. Já eu sempre digo que sou um general de peito liso e mangas lisas. Ou seja, não tenho medalhas nem cursos. Não fiquei recebendo essa ideologização reacionária. Eu só recebi uma medalha na minha vida que foi a do Pacificador, mas não fui buscá-la. Até porque essa medalha faz referência a Duque de Caxias e acho meio estranho chamá-lo de Pacificador. Ora, ele foi colocando cobertor em tudo o que era corpo… A quem nunca viu, sugiro que assista ao filme “O Grande Ditador”, no qual o Charlie Chaplin faz uma crítica, recheada de ironia, aos generais medalhados.
AHT: 2022 está logo aí. Quais suas perspectivas?
BM: Bolsonaro vai entrar em 2022 de perna quebrada. Ele saiu muito mal dessa tentativa frustrada de golpe, porque, dentro da própria direita que o acompanhava, já tem gente na cadeia e tem um exilado no México (o Zé Trovão, falso líder dos caminhoneiros). Ele (Bolsonaro) vai cada vez mais se desprestigiar e perder essência em meio ao próprio grupo que o apoiava.
Bolsonaro entrou num processo meio esquizofrênico. Foi apelar para um missivista do golpe, o Michel Temer, que deu o golpe na Dilma. E o Temer já havia se movimentado para salvar Bolsonaro na época em que era presidente da Câmara e Bolsonaro subiu no palanque para dizer que queria matar FHC. Ali, Bolsonaro poderia ter sofrido um processo interno de cassação por ter ameaçado de morte o então presidente.
Bolsonaro é um absurdo. Sei que pode parecer discriminatório o que vou dizer, mas ele merece termos fortes: Bolsonaro é um aborto da natureza.
AHT: O senhor chamou Temer de “missivista do golpe”. Então, o que aconteceu em 2016 foi um golpe, general?
BM: Dilma sofreu um “golpe branco”. Branco que eu digo é porque não era vermelho do sangue. Nem foi revolução nem quartelada. Foi uma articulação entre a classe dominante, grande parcela das camadas médias, uma mobilização de rua permanente, que já vinha de 2013, dentro do processo, e o parlamento também contra ela, porque ela não tinha jogo de negociação, como o Lula ou o Temer têm. Ela teve toda a dignidade, mas já estava fraquejando, compondo com o neoliberalismo, com um ministro da Fazenda neoliberal. Ela devia ter ido para a rua defender o governo dela, mas se acuou.
AHT: O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, revelou em livro ter planejado com o Alto Comando um tuíte, disparado em 2018 e lido no Jornal Nacional, que, na época, influenciou os juízes do STF a não soltarem Lula. Como o senhor avalia isso?
BM: Olha, Marx diz que a história não se repete, quando se repete é como farsa. Nós temos o Tiradentes como símbolo da nossa independência, um mártir. Antes nós tivéssemos tido no Brasil um Simon Bolívar, um nome mais forte, que tinha projeto. Porque Tiradentes não era um homem de grandes projetos nem grande formação como era Bolívar, mas Tiradentes é o nosso mártir. Simbolicamente, ele não entregou os envolvidos e foi martirizado. O Villas Boas não levou nem um empurrãozinho e já entregou o alto comando todo!? O comando do Exército é que decidiu fazer essa pressão. Então, ele vai entrar para a história não como o Tiradentes, mas como Joaquim Silvério dos Reis. Cada um entra para a história pela porta que deseja. Me desculpe o Villas Boas, mas ele não tinha que ter pressionado o poder judiciário. Isso não é função de militar. Ele poderia até achar que o Supremo às vezes vacila. Eu também às vezes acho. Mas o que ele fez não é função de militar. O que é um militar? Nada mais é do que um funcionário público fardado submetido à hierarquia. Tem que prestar continência, tem que se ater às ordens, tem que ter disciplina, essas coisas…
Nós vivemos numa democracia burguesa. Essa palavra (democracia) até poderia ser colocada entre aspas, porque o poder fundamental é da classe dominante. Ruy Barbosa dizia: “maldito o país que tem uma ditadura do judiciário”. Porque, nesse caso, o povo não tem mais a quem recorrer. Sabemos que o judiciário também escorregou. Agora ficou muito claro que aquele juizeco de Curitiba (Sérgio Moro) e aquele representante do Ministério Público, o Dallagnol, armaram um jogo para prenderem o Lula, para ele não ser candidato e para efetivarem esta mixórdia. E o Moro é tão descarado que aceita ser ministro da Justiça do sujeito que ele beneficiou. Agora o Moro levou um pé do Bolsonaro. O quadro é esse aí.
AHT: Por fim, gostaria de lhe pedir que comentasse uma frase que o senhor sempre gosta de dizer: “Se quiser ter um bom Exército, prepare uma boa sociedade”.
BM: José Saramago dizia: “eu não sou pessimista, a sociedade é que é péssima”. Como é que você vai querer ter um Estado bom, as Forças Armadas bem politizadas no bom sentido no quadro da nossa sociedade? O militar sofre lavagem cerebral na sua formação. Mas e os médicos reacionários que nós temos no Brasil sofrem lavagem cerebral onde? É a própria realidade da sociedade que faz eles serem assim. Então, é nesse sentido que eu afirmo: se você quiser preparar um bom governo e um bom Exército, prepare uma boa sociedade. Eu já disse em outra entrevista que o fã clube do Ustra está no governo. Mas está também na sociedade. Quantas pessoas estão ainda por aí batendo palmas para o governo e pedindo AI-5? O Ustra cometeu absurdos como torturar mãe na frente dos filhos ainda crianças. E por que nunca foi punido? Porque a sociedade civil é fraca.