Quando um jornal de Israel vem a público para dizer que o presidente do Brasil é um “profeta do diálogo”, isso não só arde os olhos dos viúvos do AI-5 como deve apontar que vivemos um processo que não merece ser calado.
Por Ana Helena Tavares
“Política não se faz com o fígado, conservando o rancor e ressentimentos na geladeira”. Começar um texto citando Ulysses Guimarães, confesso, é receita covarde. Fazia política como quem não precisa de receitas. Respirava o que sentia. E sentiu o Brasil. Um homem de diálogo que só teve sua voz calada pelo mar.
Mas não é do velho timoneiro que quero falar aqui. É do ano em que o mundo respirou política. Tantos sonhos sentidos, tantos sonhos calados.
1968 – um ano que, como poucos, soube dialogar com a história e, até hoje, parece conversar com aqueles que têm alma transformadora.
Transformação dentro das universidades; uma luta pela quebra do distanciamento aluno-professor. Transformação de todo o sistema educacional; uma luta contra o ensino pago. Transformação da vida; uma luta por mudá-la, não por tomar o poder.
Dentro de uma ditadura militar que estava no auge, o movimento estudantil fervilhava. A cavalaria militar na rua era alvejada por centenas de bolas de gude. Cada um lutava com as armas que tinha e, mesmo quem não as tinha, “fazia a hora, não esperava acontecer”. Foi com esse espírito que estudantes reuniram-se clandestinamente naquele que ficou conhecido como o “Congresso de Ibiúna”, no qual todas as lideranças estudantis presentes foram presas.
A realidade do Brasil de 1968 era um sistema bipartidário: a Arena – o “partido do sim”, e o MDB, do Dr. Ulysses, conhecido como o “partido do sim-senhor”. A censura do AI-5 calou vozes, cerrou cortinas de teatro, escureceu telas e escolheu as letras a serem ditas e impressas. Mas, muitas vezes, a proibição aguça a criação, e não se conseguia proibir tudo.
E nesse ano, tão marcado pelo paradoxo, é interessante observar que nunca houve no Brasil uma efervescência tão grande no mundo das artes. Havia um sentimento cultural no ar. Um vigor artístico sem precedentes.
As celebridades naquele momento eram os expoentes da cultura. Se muitos dizem que “hoje somos apenas ‘caras’”, naquela época as celebridades de fato tinham algo a dizer – não eram vazias. Tinham conteúdo e consistência.
Foi um tempo, enfim, de humanismo. O movimento feminista (inserção da mulher no mercado de trabalho), os direitos dos homossexuais, a militância pelo meio-ambiente, a luta pelos direitos civis e as muitas lutas de esquerda foram algumas das causas que ganharam força em 1968.
Um ano em que se fazia a hora sabendo-se o alto preço que isso poderia custar – a liberdade e talvez a vida. Em meio a um descontentamento geral com o mundo – e mesmo sem saber qual pôr no lugar – “comprava-se” esse preço.
O que importava era a utopia. Sonhava-se em chegar a “lugar nenhum” para a partir daí ser criada uma nova realidade.
Quarenta e dois anos depois, muito solicitado por um mundo que ainda clama pelo realismo dos que exigem – e concretizam – o impossível, recentemente, Lula foi parar aos cuidados de seu médico e ouviu Dilma, gaiatamente, lembrar Ulyssses: “Política não se faz com o fígado…”
Quando um jornal de Israel vem a público para dizer que o presidente do Brasil é um “profeta do diálogo”, isso não só arde os olhos dos viúvos do AI-5 como deve apontar que vivemos um processo que não merece ser calado.
13 de março de 2010,
Ana Helena Tavares, jornalista por paixão, escritora e poeta eternamente aprendiz.
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Essa moça que se diz “eterna aprendiz de poeta” e assina este texto me reportou a duas lembranças em propósito do conteúdo dessa sua análise que por momentos recorda as rigorosidades da ditadura militar. Texto bastante oportuno agora em que se discute a greve de fome em Cuba, sobre a qual o Presidente Lula se pronunciou com a honestidade dos que não olvidam as barbaridades praticadas em outro presídio da Ilha: Guantánamo.
Em uma manhã de meados da década de 80 sou desperto por uma amiga dona de uma pousada na cidade de Ubatuba, apavorada porque a polícia acabara de levar seu hóspede, o Hector, de quem não mais recordo o sobrenome.
Hector era um dissidente cubano asilado no Brasil pela ONU e já há muito tempo no aguardo de liberação dos Estados Unidos para juntar-se aos seus parentes em Miami. Tanto se delongava que nos fez imaginar outras razões menos políticas do que as que nos tentava fazer crer, para o levarem às celas de Fidel. Afinal, nada mais incomum do que tamanha desconfiança norte-americana com um real dissidente de regime comunista.
Apesar de reivindicar tenazmente essa condição, Hector nunca conseguiu me explicar direito os verdadeiros motivos que o trouxeram de Cuba, nem mesmo quando perguntei diretamente se fora pelo fato de ser homossexual. Então, até considerou folclórica a propagada perseguição aos homossexuais de seu país. Talvez desconhecesse incidentes realmente ocorridos, mas nos deixou claro que há muito aquilo deixara de acontecer.
Mas a prisão do Hector nas primeiras horas daquela manhã me arrancou da cama para atender o susto da dona da Pousada Azul Marinho que já me aguardava com a nota fiscal pela qual Hector, em vão, tentou provar aos policiais ter adquirido no comércio local o aparelho de TV pelo qual o acusavam de interceptador de furto.
Com o documento fui despertar o juiz titular da pequena comarca e juntos chegamos a delegacia onde nos inteiramos por depoimento de dois trabalhadores de uma construção e com quem Hector mantinha relações sexuais, terem sido apanhados surrupiando uma residência vizinha à obra. Apanharam para confessar outros furtos, mas sem o que dizer e para se livrarem da tortura, lembraram da TV que lhes chamara a atenção numa visita ao quarto do Hector.
Esclarecida as coisas e evidenciado o interesse dos policiais em “biscoitar uma telinha último modelo”, sobrou a carraspana do juiz ao delegado pela prisão de um asilado da ONU e sem ordem judicial. Voltei com o Hector para a pousada da amiga, ajudando-o a carregar a TV. Assustado, negara todas as vezes em que o juiz perguntou se sofrera alguma violência, mas depois mostrou a mim e a dona da pousada os hematomas na altura do estomago, onde fora severamente espancado para admitir que recebera o aparelho dos assaltantes.
Imediatamente quis telefonar ao juiz, mas Hector implorou para não fazê-lo, confessando que qualquer envolvimento policial inviabilizaria de vez seu ingresso nos Estados Unidos.. Dias depois, para dar o assunto por encerrado, perguntei se quando preso em Cuba apanhara tanto quanto ali em Ubatuba. Me olhou com um misto de indignação e orgulho, garantindo que jamais um policial cubano desrespeita ou encosta a mão num prisioneiro.
Se naquele tempo se desconfiava até do pai, quanto mais de alguém em situação tão cooptável. Mas não consegui conter uma ironia sobre aquele seu início de um ainda longo e difícil aprendizado a respeito da terra da liberdade.
A outra lembrança que me evoca a Ana Helena Tavares é mais breve e prosaica.
Em 1980 estou em pleno Congresso Nacional, enfiado num horrível terno e gravata exigido para se andar por aqueles corredores subterrâneos. Não lembro nem importa qual o feitio da estúpida e ilógica indumentária, pois para mim todo terno é horrível e sumamente incômodo, daí que a primeira coisa que fiz antes de sentar para almoçar na mesa do restaurante do legislativo federal, foi tirar a droga do paletó e pendurá-lo no encosto da cadeira. Desabotoei e enrolei os punhos da camisa, mas quando ia desafogando meu pescoço do nó da gravata aproxima-se o garçom dizendo que ali se era obrigado a comer com aqueles paramentos todos.
Reclamei, quis mudar de restaurante, mas os amigos lembraram que em Brasília tudo é longe e igual, atrasaríamos para os compromissos. Imprecando contra o Lúcio Costa, acabei acatando a determinação muito a contragosto até que pelo salão adentra uma ruidosa comitiva liderada por alguém mais alto do que o imaginava, disputadamente circundado por alguns outros que também conhecia dos noticiários. Passaram por nossa mesa e foram sentar um pouco mais adiante e bem em minha frente. Ali, antes de sentar, o sujeito alto e careca faz exatamente o que eu fizera, pendurando o paletó no encosto da cadeira.
Não teve dúvida! Surdo aos rogos dos amigos para que não arrumasse encrenca, repeti o mesmo com minha armadura de leão de chácara de igreja evangélica. O garçom não se fez esperar, mas antes que dissesse alguma coisa falei bem alto e apontando o presidente do ainda MDB: – Só ponho o meu paletó se aquele senhor ali, vestir o dele!
Ulisses Guimarães sorriu meio amarelo, gesticulando ao garçom um “quê fazer?”. Nada se fez e pude almoçar mais a gosto e sem maiores incômodos.
Perto do que em novembro do ano anterior a rapaziada daqui de Florianópolis aprontou com a comitiva do General Figueiredo, aquela minha ranhetice não significou coisa alguma, mas apesar de modesta foi alguma contribuição para essa história que a Ana Helena aí comenta de jeito tão gostoso.
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Bom relembrar fatos de nossa história recente, levados pelas mãos de quem sabe muito bem ralatá-los. A-DO-REI!!!
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