Os “traficantes”, os “cobradores” e a banalização da amizade

“Amizade não se anuncia, amizade se sente. Quem vive anunciando amizade, não é amigo, é traficante.” (Machado de Assis)

Além dos “traficantes” e dos “cobradores”, a pós-modernidade trouxe a banalização da amizade. Pelas ruas não é difícil se constatar que o termo anda sendo usado no automático. Pessoas que nem se conhecem se cumprimentam com um “oi, amigo”, e conhecidos há 2 minutos viram “amigos de infância”. Eu não teria nada contra se não soubesse que 90% destas “amizades” são fugazes, não se solidificam. E sabem porquê? Porque algo me diz que o ser humano vive uma crise de convivência em sociedade. No universo virtual, então, a ilusão de se ter “um milhão de amigos” tira o brilho da letra de Roberto Carlos. Conectar-se é a fuga perfeita para se fugir da convivência.

Por Ana Helena Tavares

Valorizo demais a palavra amizade e não consigo concordar com certos clichês que a sociedade insiste em usar para definir um termo tão nobre.

É certo que esse é um significado que anda perdido no mundo de hoje. Em muitos casos, é a velha busca pelo “levar vantagem em tudo”: quantos não gostam de curtir o status de dizer que são “amigos do rei”? Do rei da bola, do rei da música e até do rei do tráfico. Claro, há gosto pra tudo, mas isso ocorre desde que o mundo é mundo.

Machado, por exemplo, fazia uma analogia interessante que, a princípio, choca, justamente por ser tão real: “Amizade não se anuncia, amizade se sente. Quem vive anunciando amizade, não é amigo, é traficante.” É o “Bruxo do Cosme Velho” resumindo o tráfico de influência.

É engraçado que aquele que entrou para a história como “o amigo do rei” quase não versou sobre a amizade, ao contrário de muitos poetas de sua geração. No entanto, Bandeira, em seu poema mais famoso, parece usar de ironia para dizer exatamente o mesmo que Machado. Afinal, em Pasárgada, por ser “amigo do rei”, ele gozaria de inúmeros privilégios. Não me perguntem se foi intencional. Textos são feitos para que o próprio autor se entenda e para que seus leitores o interpretem, ao bel prazer. Ora, vejamos…

Peguemos o caso da família como exemplo: todos os familiares que moram com você são verdadeiramente seus amigos? Se forem, “que maravilha viver”. Mas não é regra. Amizade verdadeira é laço mais forte que o sangüíneo. Parente é uma coisa, amigo é outra, a sorte é quando se misturam. Há um clichê muito comum que afirma: “ser amigo é estar sempre ao lado”. Por esse prisma, como é possível ser “amigo do rei”? Se você for de fato amigo de um “rei”, de uma pessoa extremamente importante, repleta de afazeres, como vocês estarão sempre ao lado? Aí poderão dizer: “Ora, você está pegando a expressão ao pé da letra”. Negativo. Nem que seu amigo seja um mendigo e que você vá morar debaixo da ponte ao lado dele você estará sempre ao lado. Nem sequer morar na mesma casa é estar sempre ao lado e ser amigo também não é estar sempre ao lado nem em pensamento, tampouco, travar todas as batalhas lado a lado. Talvez isso soe quase como uma heresia, mas é fato.

Amigos de verdade se respeitam nas divergências e podem até passar décadas sem se ver, lembrando-se do outro de vez enquanto e, portanto, estando obviamente distantes fisicamente e na maior parte do tempo também em pensamento, mas isso não significa que deixaram de ser amigos e que um ainda não poderá dar o colo pro outro ou alegrar-se com suas conquistas. Cobrar afeto não é papel de um amigo, o único nome disso é carência. Amigos sabem do afeto do outro e aí está o grande pulo do gato para se compreender que é absolutamente impossível se viver sempre rodeado por todos os amigos. Afinal, ainda que você more com alguns amigos, eles têm suas vidas individuais.

Além dos “traficantes” e dos “cobradores”, a pós-modernidade trouxe a banalização da amizade. Pelas ruas não é difícil se constatar que o termo anda sendo usado no automático. Pessoas que nem se conhecem se cumprimentam com um “oi, amigo”, e conhecidos há 2 minutos viram “amigos de infância”. Eu não teria nada contra se não soubesse que 90% destas “amizades” são fugazes, não se solidificam. E sabem porquê? Porque algo me diz que o ser humano vive uma crise de convivência em sociedade. No universo virtual, então, a ilusão de se ter “um milhão de amigos” tira o brilho da letra de Roberto Carlos. Conectar-se é a fuga perfeita para se fugir da convivência.

Aí dirão: “Pronto, ela não crê em amizade virtual”. Engano. Ela é rara, mas existe, tal como antigamente havia as amizades por meio de cartas. Amizade é algo construído: amizade à primeira vista pode ser várias coisas e pode ou não se transformar em amizade, tal como amor à primeira vista é paixão que pode ou não virar amor.

Amizade é, acima de tudo, um sentimento, construído não pela troca de vantagens, como temia Machado, nem mesmo pela troca diária de afeto, como muita gente parece pensar e como Bandeira jamais teria com seu “rei”. Eu diria que é um sentimento construído pela troca de respeito, pela admiração mútua e, enfim, pela valorização do outro do jeito como ele é e da forma como ele sabe oferecer afeto.

Essa troca pode ou não ser presencial e, ainda que não seja possível que ocorra sempre, amigo zela e tem sim ciúmes, ainda que muitos não assumam. Afinal, amizade é uma forma de amor, creio que a mais singela e singular. Esses ciúmes são naturais, não podem se converter em cobrança e precisam ser saudáveis. Mesmo porque é bom lembrar que, tal como você, eles também têm o direito de ter outros amigos. Mas que há ciúmes, isso há.

Vinícius de Moraes dizia que “a amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, porque o amor traz intrínseco o ciúme”. Eu duvido que ele não tivesse ciúmes dos amigos e amigas dele.

25 de Outubro de 2009,
Ana Helena Tavares

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Por que o menino é o pai do homem?

Gravando o depoimento de Zuenir Ventura.
Gravando o depoimento de Zuenir Ventura.

Esta reportagem é um presente para o meu eterno mestre, meu amigo e incentivador, Gilson Caroni Filho. Ele dá aula para jovens e diz que tem “a idade dos alunos”, mas eu ainda acho que ele é mais novo. Por isso, parabéns por mais uma primavera, mas parabéns, principalmente, por ser um menino.

Por Ana Helena Tavares (publicado também na minha coluna na “Revista Médio Paraíba”)

William Wordsworth, um poeta romântico e naturalista inglês, certa vez escreveu um pequeno poema, chamado “My heart leaps up when I behold”, em que deixou registrado que “o menino é o pai do homem”. Wordsworth fazia, com isso, uma afirmação e tanto: Todo o homem traz em si um pouco do menino(a) que foi. O poema era pequeno em tamanho, porém grande, imenso, em significado. Tanto é que daquelas palavras fizeram uso inúmeros escritores que viriam bem depois dele.

Foi o caso, por exemplo, de Machado de Assis, que viria a apoiá-lo de forma veemente intitulando de “O menino é o pai do homem” um capítulo inteiro de seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Inversamente ao tamanho do poema de Wordsworth, este é um dos capítulos mais extensos do livro “Memórias Póstumas”, um livro marcado por capítulos curtíssimos. Não só pela diferença de tamanho com os outros, mas, principalmente, pelo conteúdo visceral de memórias específicas da infância, é engraçado, inclusive, notar como aquele capítulo parece solto no livro, verdadeiramente livre e desimpedido dentro do romance, ao contrário da maioria dos demais, que parecem uma costura. Talvez por conta desta aparente independência, há inúmeros sites que, equivocadamente, reproduzem aquele texto como “uma crônica machadiana”, sem procurarem saber ou sem se interessarem em citar que é capítulo integrante de “Memórias Póstumas” (mais precisamente o 11º). Já vi até gente dizendo, em comentário num site: “não encontrei este texto na coletânea de crônicas do Machado”. Nem vai encontrar.

Machado parece ter querido aproveitar que escrevia suas memórias póstumas, codinome Brás Cubas, para jogar ali toda a sua argumentação do porquê de o menino(a) que fomos ser o nosso “pai/mãe”, ou seja, do porquê de todos nós sermos fruto da criança que fomos e, enfim, do porquê de o homem ser fruto do meio.

Este assunto vem me chamando atenção já há algum tempo, então quero deixar aqui minha humilde contribuição. Estive recentemente no Centro Cultural Banco do Brasil para um evento sobre Jornalismo Literário e aproveitei para fazer uma pequena reportagem sobre “a influência da infância na fase adulta”, gravando cinco depoimentos em exclusivo sobre o assunto. Todas essas cinco pessoas, dentre elas o jornalista e escritor Zuenir Ventura, têm mais de 50 anos e a pergunta que fiz foi: Você considera que traz um menino(a) dentro de si? Por quê? Seguem abaixo as respostas:

Georgina, professora primária:

“Graças a Deus eu trago. Porque trazendo essa menina dentro de mim eu tenho esperança, eu tenho alegria. Se eu não trouxesse essa menina dentro de mim, eu já estaria morta. Até por tudo o que a gente vive hoje em dia, de violência, desrespeito, eu tenho que trazer essa menina dentro de mim pra poder acreditar que ainda existe esperança e alegria. Ainda mais trabalhando com criança pequena, eu tenho sempre que ter essa menina presente”

Curtis, engenheiro:

“Eu acho que você tem que considerar dois fatores. Primeiro se a pessoa teve uma infância muito boa, se ela foi muito feliz. Eu acho que isso no futuro, quando a pessoa for adulta, sempre vai remeter a uma fase boa. E também isso tem uma função muito boa na formação do caráter e de como a pessoa vai ser no futuro.”

Júlio Amaral, historiador:

“Eu acho que todo ser humano, quando adulto, é conseqüência das vivências dele, inclusive, de momentos da infância também. Então, nós somos hoje o resultado disso tudo, essa mistura que se reflete em muitas atitudes nossas. Não, logicamente, de forma infantilizada, mas muitos pensamentos daquele período nós usaremos em atitudes. De uma forma mais adulta, mas sem dúvida vai ser utilizado sim.”

Marlúcia, atriz:

“Eu acredito sim que todos temos uma parte do que fomos na infância, ou seja, a menina que eu fui eu ainda trago um pedaço dela em mim, percebendo a questão da humildade, da pureza, da simplicidade que essa criança tinha. Também as dificuldades, os defeitos, as virtudes, enquanto criança. Então, eu me vejo assim, principalmente em termos de sentimento. Em relação ao meu sentimento, às minhas atitudes comigo mesma. Em relação à sociedade não, mas em relação a mim mesma eu sinto que existe sim, porque todo mundo mantém um pouco do que é criança. Até mesmo porque a infância faz parte da formação da nossa personalidade de adulto. É impossível você deixar, contribui muito, como, infelizmente, também os traumas e as coisas desagradáveis. Por tudo isso, eu acho que todo mundo traz sim. E, inclusive, quando a gente conversa com crianças, a gente aprende muito com elas. São pequenas professorinhas.”

Zuenir Ventura, jornalista e escritor:

“Eu não só tenho um menino dentro de mim, como não quero perdê-lo. Às vezes ele aflora tanto, ele tá tão presente, que as pessoas dizem: ‘Pô, você parece criança!”. E eu recebo isso como um elogio. Porque eu acho que essa é uma das permanências que a gente tem que cultivar. Não há nada mais saudável para alguém do que essa presença desse estágio da vida. Porque a criança é tudo o que simboliza de inocência, de olhar pra realidade com os olhos lavados, novos. Então, não só concordo, como faço disso, de uma certa maneira, um objetivo de vida.”

Depois de tantas opiniões tão gabaritadas, me deu até vontade de pesquisar mais a fundo o assunto, quem sabe. Por agora, a quem quiser entender melhor este imbróglio, aconselho fortemente que comecem buscando o poema inglês e, depois, busquem o tal capítulo machadiano.

De minha parte, o que posso dizer é que minha mãe sempre se disse uma eterna criança e ela tem de fato uma admirável alma de menina. Além dela, ao longo de meus quase 25 anos, a vida já me presenteou com alguns adultos/meninos. E nisso é que a vida me foi generosa. É por causa deles que gosto tanto da menina que vive em mim e quero mantê-la viva sempre. Acima de tudo, é por causa deles que continuo acreditando no mundo.

08 de Outubro de 2009,

Ana Helena Tavares

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