A ditadura de ontem e a de hoje

Dentre várias ditaduras que ainda rondam nossa sociedade, tal como a ditadura da beleza, imposta pela indústria da moda, pode-se verdadeiramente dizer que vivemos sob uma ditadura midiática, que já não permite que a sociedade enxergue com precisão onde estão seus algozes.

Por Ana Helena Tavares

Nosso país saiu de uma ditadura a qual se viam os capuzes para mergulhar em anos de uma hipocrisia perigosa. Uma hipocrisia compactuada pela parcela podre da mídia, saudosa dos anos de repressão em que se acreditavam mais felizes. Saber-se sob controle exerce estranho fascínio, mesmo em mentes das mais instruídas, vai entender. Isso sem falar naqueles fascinados por exercê-lo.

Um fascínio que se mantém na velha política dos coronéis. Capangas ciceroneiam o principal juiz de nossa mais alta Corte. Estão longe do charme de um 007, mas os desafie de verdade e tenho certeza que, assim como o agente secreto da rainha inglesa, eles também têm licença para matar. Assim como quem os paga se julga com “licença” para ludibriar constantemente o povo e sente-se livre de penalidades. Ou pior, acima delas.

Enquanto a parcela podre da mídia distrai a população com factóides, Lina Vieira que o diga, os anos de chumbo são devidamente barganhados e transfigurados. Para os donos da mídia, o MST, por exemplo, é terrorismo, mas, quando um trabalhador rural morre baleado com um tiro nas costas, saído das armas da polícia, o episódio é chamado de “incidente”.

E, nesse caso específico, quem escreve uma matéria chamando crime de incidente, o que está fazendo senão espelhar ali a ideologia de seus patrões? É o famoso analfabeto político por opção, aquele que pensa com a cabeça de quem o paga.

“Como era a reunião de pauta no Pasquim?”, perguntaram certa vez ao jornalista Luiz Carlos Maciel. Talvez porque aquele era um jornal totalmente avesso a esse jornalismo/mercado, tão em moda, a resposta imediata foi: “Reunião de Pauta?!?! No Pasquim?!?!”. Pois é, simplesmente não havia. E por quê?

Porque faltava àquele jornal algo que sobra à grande imprensa de hoje… O que seria? Objetividade! E foi essa falta que proporcionou o seu sucesso.

Não falo de objetividade na linguagem. Aquela que – de forma totalmente imparcial – se apega exclusivamente ao objeto de análise. Isso é mito do jornalismo. “Conversa fiada”, como definiu o próprio Maciel.

O jornalista, por mais neutro que tente ser, nunca consegue se desprender por completo do sujeito que é. Portanto, todo o relato já é – por natureza – subjetivo. E como seria bom se milhões de leitores e telespectadores entendessem isso…

Então, temos aí que a objetividade à qual o Pasquim se opunha com todas as suas forças e à qual vemos a grande imprensa de hoje totalmente rendida é uma objetividade de outro tipo. É uma objetividade que vem de escolhas, interesses e, como não poderia deixar de ser, objetivos.

Nada tem a ver com o objeto a ser apresentado, ou em outras palavras, sua excelência: o fato. Esse, aliás, muitas vezes fica mesmo é relegado a décimo plano. Quem sabe ele aparecerá numa notinha de pé de página. Se der sorte.

E essa objetividade tem dono, sua santidade: o mercado. A ele, sim, o jornalismo deveria fazer oposição sempre…

Mas, aquele pra quem os donos de jornais rezam todas as noites, é capaz de tolher qualquer idealista numa reunião de pauta.

A mídia nos impõe, portanto, um constante jogo de aparências. Dentre várias ditaduras que ainda rondam nossa sociedade, tal como a ditadura da beleza, imposta pela indústria da moda, pode-se verdadeiramente dizer que vivemos sob uma ditadura midiática, que já não permite que a sociedade enxergue com precisão onde estão seus algozes. Mas lá estão eles. Os de hoje, que usam outros métodos, e os de ontem, escondidos do grande público, caminhando impunes pelas ruas desse Brasil, depois de pagarem com a morte o idealismo de tantos brasileiros.

Alguém viu por aí o Tenente Coronel José Ney Fernandes Antunes? De 68 a 71 ostentava o cargo de “conselheiro” dentro da Polícia do Exército. Hoje é provável que esteja tranqüilamente dando conselhos aos seus netos.

Viram por aí o Tenente (torturador) Armando Avólio Filho? Ah, sim, consta que está reformado como general.

E o Tenente (torturador) Luiz Mário Correia Lima? Ah, minha gente, vejam vocês, esse foi até condecorado! Foi promovido a major e hoje deve desfilar impunemente naqueles melancólicos encontros de oficiais da caserna com honrarias no peito conferidas a ele por seu empenho na captura de “terroristas”. Só o que as medalhas não trazem escrito é o que significam terroristas para ele.

É possível que esteja também solto por aí aquele que era conhecido como o “Tenente Mata Rindo”. Dá para imaginar isso? O sujeito era tão sem piedade que tinha declarado prazer em matar, não escondia o riso. Isso para mim já é doença. E o pior é a sensação de que uma pessoa dessas possivelmente continua rindo por aí, sabe-se lá fazendo o que, sabe-se lá rindo de que. Mas solta – livre, leve e solta!

Dessa maneira, fica até fácil entender o medo que alguns ex-presos políticos mantém ao sair às ruas. Só eles sabem de fato o que passaram e o trauma que ficou. O Brasil precisa lhes dar alguma tranqüilidade, precisa dar uma indenização que vai muito além do vil metal. A Lei de Anistia precisa, sim, ser revista. Ela não pode ser irrestrita e deixar de punir quem praticou tortura. Eu não tenho dúvidas de que a punição a esses monstros que assombraram nosso país seria para os tantos que sofreram nas mãos deles a maior condecoração que poderiam receber. E eles, sim, merecem.

Na entrada das sessões de tortura, havia o corredor polonês, feito por vários militares. Essa também era uma prática da polícia civil, Dops, DOI-Codis e Polinter quando prendiam grupos de “terroristas”, conforme eram tratados todos os capturados, e o corredor polonês eram as “boas-vindas”.

Eu não vivi aquela época. Nasci bem no finalzinho do exato ano em que Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Luís Inácio Lula da Silva e, até mesmo, um FHC bem diferente do que ocupou o Planalto, subiam juntos a palanques para gritar que as eleições tinham que ser diretas e tinham que ser já! Ou seja, cheguei a esse mundo doido e a esse Brasil de tantas contradições, ganhando de presente de boas-vindas a democracia. Pena que hoje eu veja essa democracia, conseguida a tão duras penas, ameaçada por todos os lados pela pior das ameaças que pode existir – aquela que vem sob o disfarce de benefício.

O grande jornalista Ricardo Kotscho defende que hoje em dia é mais fácil para o jornalista se manifestar do que na ditadura. Sem dúvida que é. O fato de ser mais fácil não quer dizer, porém, que seja assim tão fácil. Infelizmente, falsos paladinos da liberdade e da moralidade têm se proliferado mais que cupim. Nosso sistema judiciário está entregue a pessoas que se julgam os donos do mundo. Como posso me alegrar, encher o peito e dizer – “Nasci e até hoje vivo num país democrático” – quando vejo jornalistas serem censurados por fazer jornalismo? Inúmeros casos recentes poderiam ser citados. O juiz que anda com capangas e anuncia ao país que “jornalista não precisa de diploma porque isso é uma afronta à liberdade de expressão” é doutor honoris causa em baixar ordens para censurar a imprensa. E, ainda assim, ele consegue fazer com que boa parte da sociedade acredite que ele tem alguma vocação para timoneiro da democracia.

Ainda bem que Ulysses morreu no mar, então não dá nem para dizer que ele está se revirando no túmulo…

17 de Setembro de 2009,

Ana Helena Tavares

Obs: Neste texto, que está também no blog que eu ajudo a editar, o “Quem tem medo do Lula?“, eu adapto e mesclo dois artigos meus: “O Pasquim e a oposição à objetividade” e “Juntando os pedaços“.

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O Pasquim e a oposição à objetividade

“Como era a reunião de pauta no Pasquim?”, perguntaram certa vez ao jornalista Luiz Carlos Maciel. “Reunião de Pauta?!?! No Pasquim?!?!”, foi a resposta.

A revelação foi feita durante palestra sobre Jornalismo Cultural no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, na quarta-feira, 08/04/2009. “Cada um enviava suas matérias, o Tarso (de Castro, editor do Pasquim) juntava tudo e transformava aquilo num jornal. Pronto!”, completou Maciel.

Pronto? Como “pronto”? Não faltava algo àquele jornal? Uma falta que proporcionou o seu sucesso. Algo que sobra à grande imprensa de hoje… O que seria? Objetividade!

Não falo de objetividade na linguagem. Aquela que – de forma totalmente imparcial – se apega exclusivamente ao objeto de análise. Isso é mito do jornalismo. “Conversa fiada”, como definiu o próprio Maciel.

Não, caros leitores, o jornalista, por mais neutro que tente ser, nunca consegue se desprender por completo do sujeito que é. Portanto, todo o relato já é – por natureza – subjetivo. E como seria bom se milhões de leitores e telespectadores entendessem isso…

Então temos aí que a objetividade à qual o Pasquim se opunha com todas as suas forças e à qual vemos a grande imprensa de hoje totalmente rendida é uma objetividade de outro tipo. É uma objetividade que vem de escolhas, interesses e, como não poderia deixar de ser, objetivos.

Nada tem a ver com o objeto a ser apresentado, ou em outras palavras, sua excelência: o fato. Esse, aliás, muitas vezes fica mesmo é relegado a décimo plano. Quem sabe ele aparecerá numa notinha de pé de página. Se der sorte.

E essa objetividade tem dono, sua santidade: o mercado. A ele, sim, o jornalismo deveria fazer oposição sempre…

Mas, aquele pra quem os donos de jornais rezam todas as noites, é capaz de tolher qualquer idealista numa reunião de pauta.

10 de Abril de 2009,

Ana Helena Ribeiro Tavares

O Pasquim e a oposição à objetividade no Recanto das Letras

O Pasquim e a oposição à objetividade na Revista Púlpito

Link pra este texto no Observatório da Imprensa

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