Pasargadeando I

Foto: Ana Helena Tavares

– “Diálogo” poético com Manuel Bandeira – aspas nele! E negrito nos trechos de minha autoria.

– Dedico esse “diálogo” à minha tia Lourdes, que alimenta o beija-flor da foto e é, ao mesmo tempo, um necessário toque de realidade nesse meu mundo de pasargadeios…

Afirmo a todos que ganharam lugar nobre em meu coração:
No início, as aparências (falso espelho que embaça verdades)
Não eram de meu agrado…

Bobagem acreditar que o que fica é a primeira impressão!
Antes de muitos relacionamentos humanos (amores, amizades)
Houve um pré-julgamento equivocado.

“A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.”

Deus é a única perfeição.
E eu, criatura, já quis reunir:
O carisma de minha mãe
A honestidade de meu pai
A paciência de meu irmão
A memória avantajada de um de meus tios
O pragmatismo do outro
A sagacidade de uma de minhas tias
A sensatez da outra
A perseverança de minha avó materna
A vitalidade da outra avó
A alegria contagiante de meu avô materno
E o empreendedorismo do outro avô…
Ufa, hoje quero ser quem eu sou!

“Não quero o êxtase nem os tormentos.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.”

Garganta inflamada, vômito, diarréia e congestão nasal.
O corpo mais mole que uma maria-mole.
– (Atchim) Doutor, estou (atchim) mal (atchim)!
– Sente-se aqui. Abra a boca. Abra mais.
– Ahhhhhhhhh…
Caleidoscópio em punho, medidor de pressão, exames rápidos.
– É uma virose!
– Mas, doutor, minha cabeça lateja e estou explodindo de febre…
– É uma virose, já lhe disse! Vá à farmácia e compre isso e isso. Ah, e também isso.
……………………………………………………………………………………………………………………………
Conheço gente que foge de médico como gato de água.

“Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
…………………………………………………………………………………………………

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

Assim como tango lembra nostalgia
Nostalgia me lembra a pureza da infância

E foi das lembranças dessa fase
Que tive hoje a prova do passar do tempo
Ao observar brincando na calçada
A filha de uma amiga minha de infância
Pensei:
É a cara da mãe!
Corrigi:
É a cara da mãe
Quando a mãe era criança…
Óh, Deus, se a tal mãe tem a minha idade
(conclusão óbvia)
O meu rosto também mudou!
Pausa…
Em frente ao espelho a verdade me saltou aos olhos.

Uma mudança natural, que não me entristece.
Minha infância foi de grande alegria
E recordá-la me fez ganhar o dia.

“Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .”

Vida num sítio retirado:
Na auto-estrada carros vêm e vão
Sabe-se lá de onde, pra onde
Na varanda, moradores conversam alto
Cachorros brigam por ciúmes
O beija-flor, indiferente a tudo, vem se refrescar…
Dos lados o verde que tão bem cheira,
Por cima o azul sem fronteira,
Pela frente o mundo, pra quem o queira.

“Jardim da pensãozinha burguesa.

Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.”

Sociedade cheia de rapapés!
Pra que?
Dentro nada, fora dez?

“Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.”

Branco
Prepotente
Mau-caráter
Querendo sempre levar vantagem
Se mostra a fineza em pessoa…
Sobrinho-neto de sardinheira, só pensa em caviar.

Imagino-o tentando entrar no céu:
– Sai da frente que eu cheguei!
E São Pedro sem meias palavras:
– Soldados!!!!!

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

O bicho, meu Deus, era um homem.”

Crianças esquecidas em carros
Atiradas pela varanda
Arrastadas pelas ruas
Baleadas por quem as tinha que defender
Abandonadas em rios
Jogadas no lixo

Há homens, meu Deus, piores que bicho!

“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco”

Por que tanto noticiam becos, trevas, desgraças, escuridão, a morte?
– O que eu vejo é a vida!

“João Gostoso era carregador de feira livre
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”

Maria tinha cinco filhos
E era esposa de um trabalhador
Uma manhã acordou sem ser chamada
Cozinhou
Lavou
Passou
Depois se ajoelhou na igreja da favela
E chorou o inexplicável…

“Assim eu quereria o meu último poema.
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”

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Pasargadeando II – continuação

– “Diálogo” com Manuel Bandeira – 2ª parte

Quando eu escrever meu último poema
Dificilmente saberei que é o último
Mas, Deus, tenho alguns pedidos a fazer:
Que nele eu diga algo que nunca disse
E de uma forma direta
Como sempre foi difícil pra mim.
Sabes bem, meu Deus, que…
Quando eu escrever meu último poema
Pouco tempo depois terei morrido.
Por isso, peço pra ele o encanto
Que há no olhar de um recém-nascido.

“Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”

A mão que escreve
É indecisa
Detalhista
Pensa demais
Titubeia

– A mente queria ser a mão…

“Café com pão
Café com pão
Café com pão

Que vontade
De cantar!
Oô…
(café com pão é muito bom)”

Bigode de leite condensado
Sorriso de lado a lado

Há tantas coisas simples e boas
À espera de quem as valorize
Mas antes é preciso
Valorizar a si mesmo

“Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;”

Suburbana que nunca gostou
De cerveja
E deve ser péssima sujeita:
Além de ruim da cabeça
É também doente do pé
Carioca que vai à praia
No inverno
Pra andar pelo calçadão
De preferência pela contramão
Poeta amadora que na arte da prosa
Ainda engatinha
E em mensagens
É chegada a uma ladainha
Pintora que entorta
O sete
Tecladista de uma só mão
Um ser sem coordenação
A família é pequena
E bem complicada
Mas sempre a apoiou
Tem suas vãs filosofias e crê
Em Deus
Mas religião não é algo
Que lhe atraia
Uma alma sonhadora e idealista,
Um olhar observador
Que inquieta o coração
Uma mente em turbilhão.
Alguém que tem saudades
De quando ainda não existia
E sente uma estranha falta
Do que ainda está por vir
Gosta de explicar e adora esclarecer
Algum mistério
Sonhou ser professora, mas não nasceu
Pro magistério
Passou anos e anos
Nadando
Até que teve um burn out
(se afogou e se queimou com água)
Nadava sem definição de raia
Até que chegou ao jornalismo
Andando
(se encontrou)
E, feliz, definiu sua praia.

“Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada”

A quem muito busca riqueza
Felicidade não costuma dar atenção

Quando eu aterrissar numa terra distante
Tão longe que nem se imagine
E quando lá eu me sentir
Sozinha e desnorteada
– Farei amizade com um mendigo –
Sem a burocracia dos palácios
Pelas ruas encontrarei o meu amigo
Sem os afazeres de um rei
Ele terá tempo pra estar comigo
E conhecerá melhor a cidade
Pois não viverá preso a seu castelo
Terá a rua como abrigo
E sem o fardo da superexposição
Poderemos nos divertir à vontade
Quanto a ouro… Nem ligo!

“Belo, belo!
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.”

Julho de 2008
(escrito à mão, entre os dias 20 e 25, numa Pasárgada),

Ana Helena Ribeiro Tavares

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