Lobão e o direito do outro

Podem dizer: ele é só um cantor decadente querendo aparecer. Concordo. Mas, depois de eu já ter feito entrevistas formais, conversado informalmente e conhecido tanta gente que foi torturada – ou que teve amigos torturados e mortos – das formas mais monstruosas, não consigo admitir esse tipo de retórica idiota. Se ele quer defender a tortura, que diga: “acho que foi excelente haver tortura”, algo assim. Agora do jeito que ele falou dá a entender que as torturas no Brasil foram muito leves e isso é inaceitável, mesmo vindo de um músico decadente em busca de mídia.

Por Ana Helena Tavares

Durante o Festival da Mantiqueira, ocorrido no último final de semana na cidade de São Francisco Xavier (SP), o cantor Lobão abriu a metralhadora giratória contra Chico Buarque e João Gilberto. Se não bastasse, declarou que: “Hoje, dão indenização para quem seqüestrou embaixadores e crucificam os torturadores que arrancaram umas unhazinhas.”

Tô nem aí pro que ele disse sobre João Gilberto e Chico. Todos os dois estão vivos e são grandinhos caso queiram se defender. Mas dizer que “os torturadores arrancaram umas unhazinhas” não é opinião, é mentira histórica. Liberdade de expressão não é liberdade para mentir. Se o Lobão dissesse que torturar foi ótimo, não concordo, mas ele estaria adjetivando e aí, sim, seria o ponto de vista dele.

Podem dizer: ele é só um cantor decadente querendo aparecer. Concordo. Mas, depois de eu já ter feito entrevistas formais, conversado informalmente e conhecido tanta gente que foi torturada – ou que teve amigos torturados e mortos – das formas mais monstruosas, não consigo admitir esse tipo de retórica idiota. Se ele quer defender a tortura, que diga: “acho que foi excelente haver tortura”, algo assim. Agora do jeito que ele falou dá a entender que as torturas no Brasil foram muito leves e isso é inaceitável, mesmo vindo de um músico decadente em busca de mídia.

Como dizia a minha avó, “quer aparecer? Põe um abacaxi na cabeça e se veste de Carmem Miranda”.

Quando ele usou a palavra “crucificam”, será que ele estava ciente de que algumas pessoas morreram torturadas com a chamada “coroa de Cristo”? Um aro de metal, cheio de pregos por dentro, colocado na cabeça e sendo apertado até estourar o crânio. “Unhazinhas” mostruosas essas.

Ele fez uma afirmação falsa e nem tem a desculpa de que estava drogado para dizer que não sabia do que estava falando.  Claro que sabia. Falsa, porque vai contra fatos históricos. Simples assim.

Mas, mesmo que ele tivesse dado apenas uma opinião, nossa Constituição é clara: apologia ao crime é crime. E defender tortura é obviamente apologia ao crime.

Claro que ninguém vai processá-lo. Primeiro, porque seria uma anomalia já que os torturadores estão impunes e gente que os defende no Congresso, como o deputado Jair Bolsonaro, também. Depois, porque ninguém vai dar holofote para quem está atrás justamente disso.

Podem me perguntar: “Por que, então, você tá escrevendo esse artigo?” Porque a luta pelo esclarecimento dos crimes da ditadura tem sido algo a que tenho me dedicado muito e não consigo admitir que um aprendiz de fascista apareça por aí falando tamanha mentira sobre a tortura no Brasil.  Não duvido nada que jovens que curtem o som dele tenham ouvido isso e acreditado. Grande desserviço.

Este episódio é um bom exemplo do quanto é urgente a Comissão da Verdade. Não sei se Dilma conseguirá fazê-la em meio à mesquinharia política que a rodeia. O que sei é que o desrespeito à história é flagrante em muitas esquinas desse país. Antes o Lobão fosse um fato isolado, mas é apenas um pequenina amostra.

Podem dizer ainda, como me disseram, que ele e outros têm “o direito de dizer isso, já que vivemos numa democracia”. Ah, têm? É democracia ou faroeste? É terra sem lei? Se me responderem que é, vou sugerir, então, que se feche as portas do Judiciário.

Liberdade de expressão numa democracia nunca será (ou não deveria ser) plena, porque há regras de convivência em sociedade. A lei que pune (ou deveria punir) o racismo é um bom exemplo.

Nunca me esqueço do que aprendi no Colégio Pedro II: “o direito de um termina quando começa o do outro”.

Publicidade
%d blogueiros gostam disto: