Um tempo atrás eu tinha uma “mania” de escrever “diálogos” com poetas consagrados. Ou seja, pegava trechos de poemas deles e ia mesclando com versos meus, como se estivéssemos conversando. Fiz isso com vários poetas. Recentemente, publiquei aqui o meu “diálogo” com Pessoa. Fez sucesso. Claro que o do Pessoa eu não tive oportunidade de declamar pra ele, mas o do Gullar eu tive (vídeo acima).
“Diálogo” poético com Ferreira Gullar. A Gullar as aspas que são de Gullar (os trechos de minha autoria aparecem em negrito).
– Este “diálogo” é, claro, uma homenagem a Ferreira Gullar. Os trechos de minha autoria dedico ao meu amigo Antônio Carlos Secchin, que mergulhou na obra de Gullar e a quem devo alguns bons ensinamentos muito importantes para a minha formação poética.
“Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.”
Do mesmo modo que te fechaste ao amor
fecha-te agora ao ódio
que sem o amor não vive
que não é pomba livre.
“Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda”
Do mesmo modo
que à paixão te entregavas
e só vias chamas
e te encontravas nelas
sem pensar
em dramas
“Deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas”
Deixa que a cor apareça agora
sem embace
sem demora
“e em tua carne vaporize
toda ilusão”
e no suor de sua camisa
faça brisa
“Que a vida só consome
o que a alimenta.”
Que a vida só não some
pra quem a inventa.
E as partes não se traduzem
a qualquer vento.
“Não tem a mesma velocidade o domingo
que a sexta-feira com seu azáfama de compras
fazendo aumentar o tráfego e o consumo
de caldo de cana gelado”
Não tem a mesma força o solitário
que o grupo com seus elos sem preço
fazendo diminuir a sensação de impotência
de vitrines feitas de aparência
“nem tem
a mesma velocidade
a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
a penetrar soturnamente o rio”
nem tem
a mesma força
o soco e o afago
com seu casaco encorpado e caloroso cobertor
a proteger o que não vê
“Melhor se vê uma cidade
quando naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)”
Melhor se vê uma pessoa
Quando naquela mente
onde agora crescem ervas daninhas
girassóis já sorriram em coro
(e quase se sente o aroma
e o frescor
que nos belisca a lembrar do passado)
“Mas
se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória”
Mas
se assusta penetrar
nas profundezas de um cérebro sem eira
que não se reconhece no espelho
pro qual tanto faz o azul e o vermelho
arrastado pelo chão em eterna bananeira
a isso
responde a noite
que
com sua iludida e incolor luneta
refaz o dia
jovial e sem caneta.
21 de Novembro de 2008,
Ana Helena Ribeiro Tavares