FHC e a “sociologia interesseira”

Por Máximo Lula é quem, de fato, consegue interpretar a massa difusa, desorganizada, sem, entretanto, mobilizá-la nos termos do populismo apenas pra garantir a própria condição de mediador privilegiado. O que o Lula fez, com o bolsa-família, o crédito popular, “minha casa, minha vida”, não só mobiliza e – mais do que organiza – dignifica a vida. FHC usa muito mal a sociologia.

Sociologia interesseira

Por Máximo, no blog “Nação Maior

Concordo com a análise que FHC faz do contexto político da época da ditadura. Médici era mesmo muito popular, com seu radinho de pilha no Maracanã pra ver o Flamengo, seu “milagre’ econômico muito bem urdido pelo Delfim, permitindo à classe média poder comprar seu primeiro carro zero. A proposta de substituir a crítica das armas, inútil, diante de um exército poderoso, e ocupar todos os espaços possíveis de pregação oposicionista.

O resto, entretanto, é de uma sociologia interesseira:

Lula é apresentado como um populista. Aqui a malandragem, pois Fernando Henrique discutiu tanto com Octávio Ianni, com divergências de fundo sobre a natureza do populismo, que, ao invés do sociólogo de que se investe pra escrever o texto pro Noblat, quem acaba prevalecendo mesmo é o político que pensa na disputa do poder. Lula é popular – o que é outra coisa completamente diferente. Acaso lula tentou uma ligação direta com as massas, desrespeitando as intituições, sobretudo os sindicatos? É o tal negócio: o Estado pode ser apropriado pelo capital, mas quando se trata de abrir-se às organizações sindicais é “aparelhamento”, ou “república sindicalista”, espantalho usado pra derrubar Jango. “República sindicalista’ é outro papo que não cola em Lula. Jango, sim, era populista e o argumento da “república sindicalista”, embora interesseiro pra derrubá-lo, não era nenhum absurdo, pois os sindicatos ainda estavam sob o comando de pelegos da época do Estado Novo. O sindicalismo que se afirma na década de 70 – e do qual o próprio Lula é filho – tem outra natureza e demandas.

“Lula e o PT abandonaram a Revolução e se tornaram adeptos da pior forma de capitalismo, o capitalismo à base de trustes.” Isso é brincadeira e não merece sequer análise. O próprio FHC, após ter escrito isso, não deve ter feito a barba por mais de uma semana.

Seria diferente se tivesse dito que Lula e o PT se aproximaram de uma espécie de “rooseveltianismo”. De fato, o que percebo é um processo social análogo ao que ocorreu nos EUA após o governo Roosevelt: uma progressiva transformação social na direção de uma universalização da condição de classe média. FHC, de passagem, talvez pra não dar força ao Lula, escreve que o governo tem de ser mais do que mera prosperidade econômica e imagem de mobilidade social. É mesmo, cara-pálida?

De resto, foi Lula, com a sua inteligência visceral, quem resume FHC com precisão: “estudou tanto pra desprezar o povão”.

FHC propõe uma representação social na qual o povo não tem voz. Considera, como agentes válidos, apenas a classe média, os novos empresários, a juventude do mundo digital, das redes sociais, facebook, blogs, etc. Bobagem.

Lula é quem, de fato, consegue interpretar a massa difusa, desorganizada, sem, entretanto, mobilizá-la nos termos do populismo apenas pra garantir a própria condição de mediador privilegiado. O que o Lula fez, com o bolsa-família, o crédito popular, “minha casa, minha vida”, não só mobiliza e – mais do que organiza – dignifica a vida.

FHC usa muito mal a sociologia.

——– // ——–

Nota do QTMD?: A minha opinião é a apresentada no texto acima. No entanto, visto que este site não tem medo da democracia, disponibilizo aqui a defesa de FHC. 

Publicidade

O Brasil de Lula e o fatalismo dos fracos

Por Ruy Braga Parece-me que o debate sobre o lulismo necessita urgentemente de uma boa dose de reflexão a respeito do “fatalismo dos fracos” a fim de examinar laboriosa e, sobretudo, dialeticamente, o significado racional dessa tal “satisfação” (momentânea) manifestada nas últimas eleições pelo subproletariado brasileiro. Caso contrário, podemos muito bem ser atropelados pela, na expressão do comunista sardo, “atividade empreendedora” dos subalternos. Definitivamente, não seria a primeira vez na história da sociologia…

Por Ruy Braga, no Blog da Boitempo

Este mês de abril, Perry Anderson publicou um longo artigo sobre “O Brasil de Lula” na prestigiosa London Review of Books. Vale a pena conferir. Demonstrando grande familiaridade com as principais questões nacionais, o historiador inglês soube providenciar para o mundo anglófono uma útil e exitosa síntese de nossas recentes diatribes, especialmente, aquelas relacionadas ao período do “Mensalão”. Por um lado, afora detalhes que desconhecia sobre a história do projeto editorial da revista Piauí, as informações de nossa cena política são, como não poderia deixar de ser, largamente conhecidas. Por outro, o que realmente me chamou a atenção neste artigo é a conclusão contida no balanço, igualmente bem-sucedido, das principais interpretações a respeito da hegemonia lulista.

Ao longo de boa parte do texto, somos convidados a comparar três das mais paradigmáticas interpretações do “lulismo”: a hipótese do “subperonismo”, avançada por FHC, a hipótese do, digamos assim, “neofordismo” (devido à comparação das duas presidências de Lula àquelas de F. D. Roosevelt), sustentada por André Singer e a hipótese da “hegemonia às avessas”, desenvolvida por Chico de Oliveira. Em suma, se para FHC, Lula encarna, pura e simplesmente, a velha tradição populista latino-americana da manipulação das massas pela liderança carismática, barganhando a adesão popular por meio da caridade pública e da adulação, tanto para Singer, quanto para Oliveira, o lulismo representaria, ao contrário, um fenômeno social inovador. Vejamos…

Singer argumenta que o lulismo seria a expressão ideológica de uma fração de classe social, o subproletariado, que, após o período de redemocratização do país, mover-se-ia no campo político tendo em vista duas preocupações principais: a esperança de que o Estado possa diminuir a desigualdade social e o medo de que os movimentos sociais possam criar desordem política. Chico, ao contrário, entende que a chave-explicativa para a hegemonia lulista deve ser buscada na combinação do atual processo econômico da globalização financeira com o papel político deletério que o “transformismo” da alta burocracia sindical passou a desempenhar no país ao se inserir no jogo pesado do investimento capitalista, sobretudo, por intermédio do controle político, potencializado pela eleição de Lula em 2002, dos fundos salariais geridos como fundos de investimento.

Para o leitor bem informado, também, aqui, não haveria nenhum motivo para espanto. Estas são, em linhas bastante esquemáticas, as principais interpretações de que dispomos hoje no país acerca do atual momento hegemônico. A surpresa encontra-se não nas diferenças, e estas são abissais, existentes entre FHC, Singer e Chico, mas na suposta convergência entre eles: “Oliveira não contesta a caracterização da psicologia dos pobres empreendida por seu amigo, André Singer, (…). O subproletariado é assim mesmo como Singer descreveu: sem ressentimentos contra os ricos, satisfeito com os alívios modestos e graduais em suas condições de existência.” Apesar de não ter sido mencionado por Anderson, podemos, sem muita adjetivação, ampliar este consenso também para FHC.

 

Se de fato, como aponta corretamente o historiador inglês em outra passagem, “a última década não assistiu a qualquer mobilização das classes populares no Brasil”, ainda assim, “o medo da desordem e a aceitação da hierarquia, que mantêm os movimentos populares separados entre si na América Latina” deveriam ser, em primeiro lugar, demonstrados, para, então, podermos interpretá-los a contento. Não sei até que ponto Chico se reconheceria no retrato pintado por Anderson, mas, me parece razoável argumentar que, olhando para as pesquisas e resultados eleitorais recentes – além, naturalmente, da (aparente) falta de mobilização das massas trabalhadoras no país -, o subproletariado brasileiro está, ao menos até o presente, “acomodado”, ou seja, “satisfeito” com os modestos ganhos que o recente ciclo de relativa desconcentração de renda entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho proporcionou.

Então, porque aquilo que parece meridianamente claro para as principais interpretações correntes a respeito do lulismo soa ensurdecedoramente desarmônico aos meus ouvidos? Ao ler o artigo de Perry Anderson lembrei-me de uma passagem dos Cadernos dos cárcere em que Antonio Gramsci medita sobre as permanentes reviravoltas das luta de classes: “Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não mais o é: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era ‘paciente’ de uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é mais paciente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor. Mas, mesmo ontem, será que ele era apenas simples ‘paciente’, simples ‘coisa’, simples ‘irresponsabilidade’? Não, por certo; deve-se aliás sublinhar que o fatalismo não é senão a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real”.

Estaria o subproletariado brasileiro realmente “satisfeito”? Se estiver, qual o significado dessa satisfação? Dialogando com os operadores de telemarketing, grupo subproletário pós-fordista que cresce exponencialmente no país desde 1998 – e que, durante o governo Lula, espalhou-se pelo Nordeste, vale observar -, tive várias oportunidades de verificar quão poderosa pode ser a noção de “fatalismo dos fracos como vontade real e ativa” para a análise sociológica crítica e reflexiva a respeito do lulismo. Mesmo Perry Anderson parece concordar com Gramsci quando afirma, ao final de seu referido artigo, que: “O extraordinário peso eleitoral das populações mais pobres, somado à gigantesca escala da desigualdade econômica, para não falar da injustiça política, fazem do Brasil uma democracia diferente de qualquer outra do Norte, mesmo aquelas onde as tensões de classe foram um dia muito mais altas, ou o movimento dos trabalhadores muito mais forte. A contradição entre essas duas grandezas só agora começa a operar. Caso o progresso passivo se transformasse em intervenção ativa, a história teria um outro final”.

Parece-me que o debate sobre o lulismo necessita urgentemente de uma boa dose de reflexão a respeito do “fatalismo dos fracos” a fim de examinar laboriosa e, sobretudo, dialeticamente, o significado racional dessa tal “satisfação” (momentânea) manifestada nas últimas eleições pelo subproletariado brasileiro. Caso contrário, podemos muito bem ser atropelados pela, na expressão do comunista sardo, “atividade empreendedora” dos subalternos. Definitivamente, não seria a primeira vez na história da sociologia…

Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP.

Fonte: http://www.rodrigovianna.com.br/outras-palavras/o-brasil-de-lula-e-o-fatalismo-dos-fracos.html

%d blogueiros gostam disto: