“Caminhamos para um colapso e o grande responsável é o presidente”, diz ex-ministro da Saúde

O médico sanitarista José Gomes Temporão na época em que era ministro da Saúde. Foto: EBC

Por Ana Helena Tavares, jornalista

“Nós poderíamos estar conversando lado a lado, aqueles beijinhos iniciais, um abraço, um cumprimento, mas estamos aqui (cada um em sua casa numa conversa por vídeo). Claro que isso mexe com todos nós, uma situação nova. Experimentam-se, ao mesmo tempo, evidências políticas, científicas, de saúde pública, antropológicas, sociológicas e culturais. Mas espero que a gente saia dessa situação também com o olhar diferente para algumas dimensões”.

Com essas palavras, o médico sanitarista e ex-ministro José Gomes Temporão, que comandou a pasta da Saúde durante todo o segundo mandato de Lula e enfrentou a epidemia de H1N1, concluiu nossa conversa que durou cerca de meia hora, cuja gravação está disponível na íntegra ao final deste texto.

As dimensões a que ele se refere são basicamente três: a importância do Estado, o respeito à ciência e o fortalecimento do SUS. Ao longo da entrevista, ele comentou cada uma delas. Falou também sobre como a atual crise política brasileira prejudica no combate à pandemia de Covid-19.

Temos o pior dos cenários: crise econômica, crise política e crise sanitária. As condições políticas que o Brasil vive estão comprometendo drasticamente a capacidade de o país responder com qualidade a esse desafio de saúde pública. Caminhamos para um colapso da saúde pública e o grande responsável por essa questão, em última análise, é o presidente da República, que vem se portando de maneira irresponsável, colocando em risco a saúde da população brasileira.

Eu diria que o que vamos assistir nas próximas semanas serão milhares de brasileiros morrendo por conta da irresponsabilidade de nossos governantes. Porque o que está levando grande parte das pessoas a romperem com o isolamento social é a impossibilidade de sobreviverem em casa. 40 milhões de trabalhadores que trabalham por conta própria. 11 milhões de desempregados. E as medidas econômicas que o governo anunciou até agora são risíveis. Os 600 reais que não estão nem chegando às pessoas adequadamente.

Quando nós precisaríamos nesse momento de uma política anticíclica, totalmente heterodoxa, com uma renda universal, com investimentos maciços na área de saúde, com uma reconversão da nossa indústria para a produção de equipamentos e insumos para o SUS. Nada disso você vê o governo discutir. Então, é pouco sério nesse momento defender retorno ou flexibilização do isolamento social. O fluxo de veículos nas cidades aumentou, as pessoas estão saindo de casa, e isso aponta para um cenário muito dramático nas próximas semanas.”, avalia.

Sobre o papel do Estado, Temporão acredita que tudo o que estamos vivendo serve para desnudar “a falácia de que o mercado tudo resolve e que o Estado é a grande causa de todos os problemas do Brasil”. Ele acredita que “a situação econômica vai ficar no chão e sem o Estado forte que lidere o processo de reerguimento da economia nós não vamos avançar”. Sobre a questão da ciência, o sanitarista considera “inadmissível que a gente consiga viver num país como o Brasil com um governo que nega e despreza a ciência, e ainda ataca os cientistas”. Já sobre o SUS, o ex-ministro aponta a necessidade de se repensá-lo e fortalecê-lo, garantindo sua sustentabilidade econômica.

“Existem muitos Brasis e muitos SUS”

As diferenças regionais brasileiras se refletem em diferenças na qualidade de atendimento e na oferta de leitos do SUS em cada região, analisa Temporão, o que se agrava pela desigualdade social do país e pelo pouco investimento público:

“Hoje, não temos uma estrutura de financiamento que dê sustentabilidade ao SUS. E temos que lembrar que no governo Temer, em 2016, foi aprovada a famigerada emenda constitucional 95 que congelou os gastos em políticas sociais por 20 anos. Isso significa que, de 2016 para cá, o orçamento do Ministério da Saúde, perdeu, pelo menos, 20 bilhões de reais. Isso foi um crime contra a saúde pública e contra as políticas sociais. E o Congresso Nacional aprovou, sob o aplauso de grande parte da sociedade brasileira.

Então, nesse momento em que as pessoas precisam tanto do SUS, perguntam: ‘bom, onde é que nós erramos? Por que não temos leitos? Por que não temos respiradores? Profissionais? Por que os profissionais não são bem remunerados? O que está acontecendo? Por que nós não produzimos aqui? Dependemos de tudo ser produzido e importado de fora?’ Ora, é um conjunto de fatores, é um somatório, de fragilização econômica, financeira, tecnológica.

Existem muitos Brasis e muitos SUS. Uma coisa é o SUS da região amazônica. Outra coisa é o SUS do Sul e Sudeste. Outra é o SUS do Nordeste. E isso agravado pela brutal desigualdade socioeconômica, que é uma singularidade brasileira e um agravante do quadro que está se desenhando aqui. Então, eu afirmaria o seguinte: sim, o SUS vai salvar muitas vidas. O SUS vai ser absolutamente imprescindível e espero que a sociedade brasileira aprenda com isso e reflita sobre a importância de termos um sistema universal que seja sustentado politicamente por todos os brasileiros. Para nós e para as próximas gerações. Mas, ao mesmo tempo, nós vamos ver o SUS mostrar fragilidades, as quais são estruturais, não apenas conjunturais, e precisamos refletir sobre isso”, alerta o médico.

As características específicas da Covid-19 já levaram ao colapso de sistemas de saúde em vários países.

“É importante dizer que nenhum sistema de saúde do mundo está preparado para enfrentar uma situação como essa. Qual é a questão central, para as pessoas entenderem? Nós estamos falando de uma doença que cerca de 80% das pessoas que entrarem em contato com o vírus não vão sequer apresentar sintomas ou vão apresentar sintomas muito leves. 15% vão apresentar sintomas que eventualmente necessitarão de algum tipo de assistência.5% vão desenvolver casos mais graves.

O problema é que esses 5% vão necessitar de atenção muito especializada em hospitais, usando medicação, fazendo diálise, porque existe uma falência renal em muitos pacientes, necessidade de ventilação, cuidados intensivos. Isso sobrecarrega o sistema de saúde de qualquer país, basta ver o que aconteceu na Itália, na Espanha, e está acontecendo nos EUA. A rigor, nenhum país está totalmente preparado.

Dizendo isso, temos que pensar que SUS nós temos. Um SUS que nas últimas 3 décadas foi atacado pela sociedade, pela grande mídia, e deixado ao relento pelos governantes de vários matizes políticos e ideológicos”, dispara o ex-ministro.

Influência da crise política no enfrentamento à pandemia

No momento em que se dá a pandemia do novo coronavírus, o Brasil é governado pela extrema-direita e, além da crise sanitária, o país convive com uma crise política. Como um problema influencia o outro?

“Influencia muito. De modo muito negativo. Por quê? Trata-se de uma doença nova. Podemos dizer que estamos vivendo um experimento singular na história da humanidade. Um dos princípios para se enfrentar uma situação desconhecida, em qualquer país ou governo, deve ser o respeito à ciência. E olhar o que está acontecendo nos outros lugares do mundo. Nos falta exatamente isso. Essa coerência, essa coesão.

Nesse momento, a liderança máxima de um país tem o papel intransferível de passar para a sociedade tranquilidade, firmeza e transparência. Liderar o processo de enfrentamento à pandemia. E o que nós estamos vendo desde o início é a negação de todos esses princípios. O presidente, claramente, nega a ciência. Virou garoto-propaganda de um medicamento, quando, na verdade, acabou de sair um artigo publicado* mostrando que há evidência de que a hidroxicloroquina faz mais mal do que bem.

Brigou o tempo todo com o seu ministro e o demitiu. Nomeou um novo ministro que ainda não disse a que veio. Insiste na dicotomia entre economia e saúde, que é uma falsa questão. Na verdade, nesse momento, a economia tem que estar a serviço da saúde”.

Um general no Ministério da Saúde

O atual ministro da saúde Nelson Teich nomeou o general Eduardo Panzuello para a secretaria executiva, com a tarefa de agilizar as medidas em relação a insumos, remédios e equipamentos. Temporão vê com extrema preocupação a nomeação de militares para funções estratégicas no combate à pandemia.

“Se alguém escolhesse um sanitarista para ser o segundo homem do ministério da Defesa, soaria exótico. Então, acho que essa nomeação é descabida. Não faltam técnicos de qualidade e competentes para assumir esse cargo. Não sei até que ponto isso foi imposto para o novo ministro, a quem eu não conheço. Mas pode ter certeza de que é uma pessoa que não conhece nada de saúde. Pode conhecer muito de logística, mas pelo fato de não conhecer do setor de saúde, num momento de pandemia, acho uma medida altamente questionável”.

H1N1 X COVID-19

Em 2009, o mundo enfrentou outra crise sanitária com o vírus H1N1, que começou no México e teve a capacidade de passar de suínos para humanos. Não era um coronavírus, mas sim da família influenza. Temporão, que era ministro da Saúde, comenta as semelhanças e, principalmente, as diferenças, e explica por que, naquela época, não houve necessidade de isolamento social global como vemos hoje:

“Eu estava outro dia revendo notícias de abril e maio de 2009 e a sensação de impotência, de medo, de insegurança, era tudo muito parecido com o que se viu no Brasil dois meses atrás. Mas as diferenças são muito expressivas. Primeiro, naquela época nós tínhamos medicamento. No caso do coronavírus, não temos.

Segundo, tivemos condições de num tempo muito curto haver vacina. Isso porque o vírus H1N1 é da família influenza, para a qual já havia vacina. Essa que se toma regularmente. E o Instituto Butantã, em São Paulo, é dos maiores produtores de vacinas no mundo. Então, em janeiro de 2010, o Brasil já teve condições de vacinar 100 milhões de pessoas. Metade da população. Foi o país que mais vacinou no mundo.

E terceiro, percebeu-se rapidamente que a letalidade do H1N1 era muito semelhante à letalidade dos outros vírus influenza. Vários estudos já apontam que a letalidade do coronavírus é muito maior. E as pessoas com coronavírus (em estado grave) necessitam ficar internadas por mais de 15 dias. São diferenças muito importantes que levaram a que naquele momento não fosse necessário uma estratégia de contenção, de isolamento, como hoje. Ou seja, este vírus é muito mais agressivo, é muito mais grave, tem uma capacidade de disseminação muito grande. Infelizmente, nós ainda não temos ciência para ter uma medicação e a vacina ainda está distante”.

“Fiquem em casa”

O ex-ministro alerta que “a única resposta que a ciência pode nos dar nesse momento é: fiquem em casa”.

“Isso pode parecer dramático, mas é a verdade. Nós não temos até o momento nenhum medicamento que atue diretamente sobre o vírus, que pudesse ser usado no início dos primeiros sintomas, reduzindo o grau de gravidade. É o que gostaríamos de ter: uma droga que aos primeiros sintomas a pessoa pudesse tomar e impedisse a evolução para casos mais graves. Infelizmente, não temos. A primeira vacina começa a ser testada agora na Alemanha. Teremos os primeiros resultados preliminares em junho ou julho. Se funcionar, é possível que no primeiro semestre do ano que vem tenhamos uma vacina. Aí o cenário muda. Tendo essa vacina, poderemos utilizá-la e proteger as pessoas”.

“Informação com transparência é tão importante quanto ter leitos”

Onze anos atrás, época do H1N1, o whatsapp estava sendo criado e as redes sociais ainda estavam engatinhando. Não se via todo mundo com celular como hoje. Essa explosão tecnológica também exerce influência positiva e negativa sobre o combate à pandemia, como explana Temporão:

“Por um lado, isso é bom porque você tem uma possibilidade muito grande de disseminar informação de qualidade. Por outro lado, você tem uma fábrica incrível de notícias falsas. Inclusive, já existe uma discussão na sociedade brasileira quanto à punição para quem produz e dissemina as chamadas fake news. Porque (no caso da pandemia) é um crime contra a saúde pública.

Por outro lado, há uma possibilidade maior de redes de colaboração de pesquisadores, discutindo, apresentando evidências, avançando em termos de conhecimento. Eu diria que a informação com transparência numa situação como essa é tão importante quanto ter leitos, respiradores, médicos e enfermeiros.

E o Brasil está mostrando isso: como o ruído na comunicação, como a falta de transparência, como a irresponsabilidade de governantes, a falta de coesão e de uma condução homogênea e harmônica do enfrentamento dessa situação, pode causar problemas. Então, quanto mais clara, transparente e objetiva a comunicação, orientando a população, transmitindo segurança, mas mostrando a realidade, tem um valor inestimável para resultados positivos”.

O exemplo português

Portugal tem sido um dos países mais elogiados quanto à eficiência no combate à pandemia. Para Temporão, que é português de nascimento, vários fatores explicam esse sucesso, mas o primeiro deles foi a adesão da sociedade portuguesa ao isolamento e o outro a seriedade dos governantes:

“Deu certo, primeiro, porque a sociedade portuguesa aderiu massivamente ao isolamento social. Aliás, a sociedade fez isso antes do governo. O governo correu atrás da sociedade. Segundo, o sistema de saúde português é como o nosso SUS. Eles têm um sistema universal também. E, claro, é um país com 10 milhões de habitantes em uma situação de um sistema muito mais sólido, de muito mais qualidade que o nosso, com muito mais recursos. Quando você olha para a Europa como um todo, Portugal não é um país rico, mas, comparado com a situação brasileira, é muito mais homogêneo.

E, o mais importante, lá nós não temos um primeiro ministro que vai para a televisão, com frequência, falar sandices. Ou criar inquietação na sociedade ou dizer que as pessoas têm que sair de casa para trabalhar. Ou que não escute o que o ministro da saúde está dizendo. Isso lá não acontece. Tudo isso explica: coesão, liderança, qualidade do sistema de saúde, menor desigualdade social e um primeiro-ministro sério que preza a ciência e defende a vida dos seus concidadãos acima de qualquer coisa.”

“Como será o amanhã?”

Um samba enredo de 1978, da União da Ilha, composto por João Sérgio, perguntava “como será o amanhã?” E completava: “Responda quem puder”. Segundo Temporão, nesse momento ninguém pode.

“O grau de incerteza é enorme. O novo ministro (Nelson Teich) fala em testar mais para ter mais conhecimento da realidade e a partir daí iniciar um processo de flexibilização do isolamento social. Ora, primeiro, não se sabe até que ponto esses testes rápidos, que usam uma gota de sangue para fazer o diagnóstico, são eficazes, qual a qualidade deles.

Segundo, não existe pesquisas ainda que assegurem se o grau de imunidade das pessoas que entraram em contato com o vírus é permanente ou não. Terceiro, não se sabe se esse grau de imunidade é alto ou baixo. Ou seja, sabe-se muito pouco. Qualquer afirmação nesse sentido é chute, na verdade. Qualquer epidemiologista, ou pesquisador, sério teria nesse momento sérias precauções de defender qualquer tipo de flexibilização do isolamento social“.

“Nova normalidade”

“Não há nenhuma previsão” de volta à chamada “normalidade” e possivelmente teremos que nos adaptar a uma “nova normalidade”. É o diagnóstico do médico sanitarista:

“Eu diria que grandes eventos com multidões aglomeradas, esqueça. Probabilidade de daqui a alguns meses, eu não saberia dizer quantos, talvez dois ou três, você iniciar um processo de volta a essa nova normalidade, que não será uma normalidade normal, será uma normalidade nova que a gente não sabe ainda qual é, por etapas, por setores, é o mais provável. Aliás, isso começa a acontecer agora na Alemanha. Também na França. Eles estão alguns meses na nossa frente e vamos poder aprender com eles.

Então, nós temos que aguardar ainda um pouco mais. A ciência mundial está fazendo um gigantesco esforço. É impressionante como nós avançamos de 2009 para cá, pensando na minha época de H1N1, em termos de redes de pesquisadores, recursos para pesquisas, novas investigações… Nós vamos ver muitas coisas interessantes e novas nas próximas semanas, nos próximos meses, mas nesse momento em que conversamos o grau de incerteza é muito grande”.

O medo maior é pela situação do Brasil

É natural que situações de incerteza gerem medo. Temporão diz que gostaria de dar “uma contribuição maior” nesse momento e assegura que não teme tanto por si, mas muito mais pelo país:

“Tenho 68 anos, vivo com minha mulher que tem quase 65 anos, com minha sogra que tem quase 90, e com um filho. Evidente que todos nós ficamos preocupados. No meu caso, como sou médico e estou acompanhando de perto toda a situação, sei de muitas informações e claro que tenho preocupação. Mas minha grande angústia nesse momento é estar observando sem poder dar uma contribuição maior.

Tenho trabalhado muito, tenho dado dezenas de entrevistas, tenho escrito artigos, tenho feito o que eu posso. Participo de muitas redes, muitos grupos que trocam informações, que conversam, que mobilizam pessoas, acho que isso é fundamental. Mas hoje eu te diria que estou mais angustiado pelo que vai acontecer com o nosso país, pelas dificuldades que vamos atravessar nos próximos meses, do que pela minha situação individual”.

*Para ler (em inglês) o artigo citado sobre a hidroxocloroquina, acesse os links:

https://drive.google.com/file/d/1wHB5IQcuPH8MsN0Qa2kZTQIvySYEKTGm/view?usp=sharing

https://drive.google.com/file/d/1CDUftrxEiYHzhFT5f8odYHgU7xD7KebJ/view?usp=sharing

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FORTALECER O SUS – TAREFA NACIONAL. A propósito da epidemia do CoVID -19 no Brasil

Por Eduardo Azeredo Costa Vai passar? Sim, vai passar. E ninguém tem dúvida de que a humanidade sobreviverá e continuará sua história na Terra. Cremos que deixará legados. Bons e maus. Quais serão, para além de uma tênue memória do episódio, 100 anos depois, como a da pandemia da gripe espanhola de 1918/19?

Eduardo de Azeredo Costa*

            Vai passar? Sim, vai passar. E ninguém tem dúvida de que a humanidade sobreviverá e continuará sua história na Terra. Cremos que deixará legados. Bons e maus. Quais serão, para além de uma tênue memória do episódio, 100 anos depois, como a da pandemia da gripe espanhola de 1918/19?

Pacientes durante a gripe espanhola. Foto: Biblioteca Nacional Digital/Agência Senado

Algumas publicações científicas e de imprensa jornalística relembraram que a espanhola foi provavelmente americana, disseminada no mundo pela participação de soldados na Guerra de 1914, e do impacto que teve, em grande parte pela negação de que havia um novo virus circulando. Ao lado dessas informações, pouco valorizadas, quase lúdicas na abordagem da imprensa brasileira, aproveitamos agora a necessidade de usar o isolamento social e a quarentena para combater o Coronavírus, graças, em particular, a efeitos positivos demonstrados nos Estados Unidos.           

A economia agro-exportadora continuou no Brasil, apesar dos episódios nefastos, como o de navios não poderem atracar por epidemias a bordo (menos significativos do que à época da epidemia de Febre Amarela no Rio de Janeiro – poucos anos antes). Afinal, o modelo tinha sobrevivido também à Greve Geral de 1917.

A explosão de alegria no Carnaval seguinte precisou ser lembrada por pesquisa aos periódicos de então. Mas, houve hipótese também de dano mais prolongado do que as milhares de mortes daqueles meses. Suspeita-se que a epidemia de infartos e doença coronariana, das décadas 1940-50, possa ter sido um legado tardio.

Antes, perdido na rememoração do final de 1918 no Brasil, veio à tona que o quinino foi usado para tratar pacientes, o antimalárico usado à época. Não surpreende, pois, que agora, por analogia, a cloroquina venha à cena.

Não veio, no entanto, uma ação do Governo na área de saúde que dá frutos até hoje, em que pesem problemas variados ao longo da história das instituições nacionais de saúde.

A criação do “Serviço de Produção de Medicamentos Officiaes” (SPMO) data de 1o. de maio de 1918, por Decreto Presidencial no. 13.000, que definia que se localizaria no Instituto Oswaldo Cruz; seu objetivo era produzir quinino e outros medicamentos. A epidemia no Brasil aparentemente começou em setembro daquele ano, a ação foi preparatória e de longo alcance. E o presidente atento à saúde e higiene, que antes nomeara Oswaldo Cruz, e agora depositava a confiança em Carlos Chagas, faleceria vítima da espanhola. Passada a epidemia, o medicamento ainda interessava, foi construída a pioneira fábrica de quinino na fazenda de Manguinhos, logo atrás do Castelo de Oswaldo Cruz. Farmanguinhos/Fiocruz é sua sucessora.

Em 2008, descortinado esse fato, descerramos uma placa comemorativa no Complexo Tecnológico de Produção de Medicamentos em Jacarepaguá, com a presença da Chefe da Casa Civil Dilma Rousseff e do Ministro José Temporão. Mais tarde, ainda entregamos a primeira partida de Efavirenz (medicamento crítico para a AIDS), totalmente produzido no Brasil e sob controle direto de Farmanguinhos em ação inovadora. Essa ação estatal, ao contrário de prejudicar iniciativas produtivas farmoquímicas privadas nacionais, iniciou o processo de salvá-las e desencadeou outras ações de governo coerentes.

Paulo Buss, então presidente da Fiocruz, Dilma Roussef, ministra da Casa Civil, José Gomes Temporão (encoberto), ministro da Saúde, Eduardo Costa, diretor de Farmanguinhos, descerram a placa comemorativa dos 90 anos da criação do SPMO em 2008.

Talvez, possamos estar errados quanto à opinião de que a criação do SPMO foi o maior benefício para o Brasil trazido pela gripe espanhola há cem anos.

Diferente da pandemia de gripe espanhola o surto inicial dessa coronavirose, com manifestação clínica classificada como Síndrome Respiratória Aguda Severa – SARS, logo que identificado, foi notificado ao mundo inteiro. E o material genético do mesmo foi enviado para os principais laboratórios do mundo, permitindo avanços diagnósticos e pesquisas descentralizadas, antes que muitos países fossem acometidos. Uma nova ética para um mundo em conflitos permanentes. 

Mas a tradição bélica norte-americana prosseguiu com difamação e atos de gangsterismo internacional, confiscando materiais necessários a outros países, inclusive materiais brasileiros, que passassem pelo seu território.

E agora? Além de importar equipamentos, como respiradores e produtos, como testes diagnósticos, o que faremos? A produção nacional diz da soberania, mas principalmente de não ficar inertes frente à escassez mundial, deixando de servir ao povo brasileiro. Temos capacidade tecnológica para tanto, mas as armadilhas da tradição exportadora de produtos primários nos fez refém de importações que destruíram nossas indústrias privadas.

E quem trabalhou em laboratórios como o Instituto de Pesquisas Biológicas de Porto Alegre, Instituto Adolfo Lutz, Instituto Oswaldo Cruz, Instituto Evandro Chagas, Instituto Vital Brazil e outros, sabe da capacidade que é atropelada pela importação, mas também pela falta de planejamento na saúde, que depende da definição de programas de grupos técnicos ad hoc, e, antes de nos preparamos para supri-los, deslancham-se programas de compras por importação.

Assim, somos levados a pensar no tipo de legado para o SUS, agora. A defesa da indústria nacional é crítica para os sistemas de saúde, especialmente nos momentos de crise. Enquanto a criação do Serviço Nacional de Saúde inglês alavancou a indústria britânica de medicamentos que, de importadora, passou a exportadora, não criamos as bases para isso na farmoquímica brasileira. Na área de imunobiológicos, liquidamos com nossos produtos pioneiros por falta de inovação e passamos a importar tecnologia das multinacionais.

Esse fato demonstra que o projeto nacional de desenvolvimento é condição necessária para o fortalecimento do SUS. E para ele estabelecer um planejamento do Ministério da Saúde que o respeite e para ele contribua – uma interação necessária.

Ilustração: Iraní Alireza Pakdel, artista iraniano

FORTALECER O SUS é também liberá-lo de riscos do trabalho e do ambiente, através de todo o sistema produtivo e ambiental, bem como do efeito danoso do abandono social da população, da cruel desigualdade social.

FORTALECER O SUS é propiciar educação para todo o povo brasileiro para que possa se proteger e cuidar dos seus familiares. Assim o SUS poderia dedicar-se ao que é central na sua missão.

Dito isto, há também de FORTALECER O SUS por dentro ou em si. O que precisa ser o SUS renovado? Um sistema de saúde universal que garanta a prestação de serviços de saúde adequados à população brasileira com equidade.

O SUS, no entanto,  não é o único prestador de serviços de saúde no Brasil. Aliás, como sistema, ele não é um ente, não presta qualquer serviço. As entidades de saúde, públicas e privadas, filantrópicas ou lucrativas, é que prestam os serviços. E o SUS os financia. Paralelamente ao SUS, há outros prestadores de saúde privados do sistema de saúde dos planos privados ou autônomos (muito marginalmente) hoje, que não são financiados diretamente pelo SUS, mas sim diretamente por usuários, ainda que recebam indiretamente benefícios do Estado (inclusive como abatimento de imposto de renda dos que ganham mais). Para regulamentar o segmento de prestação de serviços privados de saúde, foi criada a Agência Nacional da Saúde Suplementar. Como também foi criada a ANVISA para cuidar dos padrões de qualidade de produtos sanitários.

Das características do SUS, enquanto tal, e não de todo o setor saúde brasileiro, resultam alguns problemas que precisam ser sanados para que seja fortalecido internamente. Vamos focar em apenas dois deles.

A fragmentação dos prestadores por entidades com abordagens e interesses diferentes, reduz a capacidade de planejar nacionalmente e mesmo localmente, resultando daí a má distribuição dos recursos, provocando inequidade no acesso e na qualidade dos serviços. Isso, no caso brasileiro, fica mais sério ainda, dada a urbanização descontrolada na falta de políticas habitacionais, de saneamento, de transportes, educacionais, enfim, econômicas e sociais agravadas durante a ditadura militar e não respondidas a contento nesses 30 anos, pós CF88 e Lei 8080/1990.

A crise atual agrava-se na distribuição dos leitos de UTI que seguem padrões mercadológicos, como já mostrou a tese de doutorado de De Negri Fo. de 2016, ficando distantes do densos núcleos urbanos de mais baixa renda e da população do interior que os têm com baixa tecnologia, ainda que o legado que deixamos no Rio de Janeiro, em 1985, tenha se consolidado no Brasil com o SAMU.

Ilustração: Iraní Alireza Pakdel, artista iraniano

A outra questão se refere aos recursos humanos para a saúde. Essa mesma característica do SUS não permitiu a criação nacional de uma carreira de servidores do SUS. Ora, há prestação por entidades públicas de saúde federais, estaduais e municipais e privadas. E mesmo na área pública, inclusive com políticas neoliberais de precarização de contratos trabalhistas e de legislação de controle fiscal, grande parte dos trabalhadores da saúde são terceirizados, ou seja, não têm a característica de estabilidade para o treinamento continuado e o convívio prolongado com as comunidades, que são a melhor característica da atenção primária de qualidade.

Os servidores do front sanitário, particularmente nos hospitais, nessa epidemia, como soe acontecer, são os mais expostos ao risco de adoecer e morrer. Pela natureza da exposição ser íntima, como especialmente com o pessoal de enfermagem e serviços de limpeza, prolongada e submetida a altas cargas virais. 

Nessa pandemia, a sociedade tem manifestado seu reconhecimento pela dedicação e tem valorizado os trabalhadores da saúde, em todo o mundo. Na Espanha, criou-se um ritual matinal de aplaudir das janelas os trabalhadores da saúde que vão assumir seus postos. E mais aplaudidos deveriam ser aqui no Brasil, onde suas condições de contrato e trabalho são precários. Não é incomum que um técnico de enfermagem trabalhe em até três hospitais diferentes, no regime de plantão, com contratos diferentes, para poder ganhar o suficiente para manter sua família. Com isso, também são vetores de transmissão da doença para suas famílias e comunidades, e vários mandaram seus filhos para casa de outros parentes nesse momento.

No entanto, isso não acontece só agora, a incidência mais elevada de várias doenças está entre o pessoal da saúde todo o tempo. Um dos exemplos críticos é com a hepatite C.

Ilustração: Iraní Alireza Pakdel, artista iraniano

Por tudo isso, está na hora da Carreira da Saúde. Preferentemente, em tempo integral. É tão estratégico quanto a das Forças Armadas para a segurança nacional. E nos deixa um legado indelével do enfrentamento ao Coronavírus, que vai nos servir por mais 100 anos. Será sempre lembrado que a outorga foi por sua dedicação ética, seu destemor e sua disciplina profissional.

Claro que, para isso, precisamos fazer do SUS um Serviço Universal da Saúde, o fortalecendo. Planejamento central, que não seja apenas o orçamentário, mas o estratégico, voltado para a equidade. E preparo de unidades flexíveis de saúde para movimentação tática.

De início criar os SES – Serviços Estaduais de Saúde, públicos, universais a nível estadual. Os serviços municipais deverão ser diretamente coordenados por cada estado.

Outro arranjo poderia ser a criação de um Instituto Nacional de Saúde Pública.

Não propomos, portanto, Mais SUS, ou Defender o SUS, a proposta é a união nacional para FORTALECER O SUS, como Objetivo Nacional permanente, com a criação do Quadro Nacional de Servidores Públicos da Saúde.

*Eduardo Costa é médico-sanitarista, PhD em epidemiologia. Atualmente é assessor de Cooperação Internacional da Escola Nacional de Saúde Pública ENSP/Fiocruz, onde foi professor titular de epidemiologia e diretor de Farmanguinhos. Foi ainda diretor do CENEPI/FNS e Secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, além de ter sido Secretário Estadual Saúde do Governo Leonel Brizola no Rio de Janeiro.

Observação: este artigo foi redigido em 5 de abril, revisto em 6 de abril, para publicar no dia 7 de abril de 2020, celebrando o dia mundial da saúde.

ANEXOS:

1) Sugestão de Campanha:

#FORTALECER O SUS É CRIAR A CARREIRA NACIONAL DA SAÚDE!

2) REFERÊNCIAS DO AUTOR SOBRE O TEMA:

–  SUS – Uma visão crítica de sua definição constitucional – Questão democrática sem projeto nacional?

http://www.escs.edu.br/revistaccs/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/521

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