“Bolsonaro blefa com as Forças Armadas”, diz general Bolívar Meirelles

Nesta entrevista ao QTMD?, o general Bolívar diz não encontrar nenhuma possibilidade de comparação entre a conjuntura de hoje e a da década de 60. Para ele, “as Forças Armadas não acompanharão Bolsonaro num golpe”.

General Bolívar

Por Ana Helena Tavares, jornalista, editora do QTMD?

Hoje general reformado, Bolívar Marinho Soares de Meirelles é um dos remanescentes entre os militares que foram cassados pela defesa da legalidade e pela oposição ao golpe de 64. Além disso, é mestre em administração pública com a dissertação “Conflitos políticos e ideológicos nas Forças Armadas Brasileiras” (disponível neste link). Nesta entrevista ao QTMD?, o general Bolívar diz não encontrar nenhuma possibilidade de comparação entre a conjuntura de hoje e a da década de 60.

Para ele, “as Forças Armadas não acompanharão Bolsonaro num golpe”. Mesmo porque, garante, “golpe de Estado não é dado somente por militar”. Bolívar acredita que a classe dominante, nesse momento, “não está bolsonarista” e percebe que o presidente vem perdendo apoio entre seus antigos apoiadores. “Bolsonaro vai entrar 2022 de perna quebrada”, vaticina.

A seguir, a entrevista em detalhes:

Ana Helena Tavares: O senhor vê algum paralelo entre o que vivemos hoje no Brasil e o que o senhor viveu na sua juventude na década de 60?

Bolívar Meirelles: Não há nenhuma possibilidade de comparação da conjuntura política atual com a conjuntura dos anos 60. Começa logo pelo fato de que nós não vivemos uma situação de guerra fria. São vários polos que se colocam hoje no tabuleiro.

Houve essa tentativa de golpe do Bolsonaro (no 7 de setembro) que já era para ter resultado no Impeachment dele. O poder judiciário e o poder legislativo já deveriam ter afastado esse cidadão do poder.

Foi abortada. Ele poderia querer. Tinha um grupo de rua mais organizado do que nós que somos contra o governo dele. Somos quantitativamente maiores, porém com menos organização. O jargão ele vai buscar em Plínio Salgado nos anos 30: Deus, Pátria e Família. Isso é integralismo, extrema direita.

Digo sempre que os golpistas têm duas mensagens: uma é o “mar de lama”, como se eles não fossem corruptos. Está aí a prova desse governo desse capitão corrupto, família corrupta. Eles não iam fazer nada de corrupção e eles estão fazendo. Por outro lado, os golpistas agem a partir de uma posição visceralmente anticomunista, que no Brasil costumo denominar de anticomunismo larvar, porque é um anticomunismo tão imbecil que não vê que o Brasil não tem as menores condições sequer de fazer uma revolução socialista. Não há condições, mas eles insistem nisso tentando descobrir anticomunismo até no Lula.

Sempre votei no Lula no segundo turno, porque votava no Brizola no primeiro e Lula era o “menos pior” diante das ameaças neoliberais. Mas aí ele toma posse e foi o que mais beneficiou banqueiros e usineiros. Então, não tem nada de comunismo na cabeça do Lula. No livro “O que fazer?”, Lenin aponta justamente a diferença entre uma posição revolucionária e uma posição sindicalista. Esse livro é fundamental para entender que o Lula não tem nada de comunista. E o PT é um social-democrata devagar.

Como também social-democracia no Brasil é uma brincadeira de mau gosto. O chamado “Partido da Social-Democracia”, o PSDB do Fernando Henrique, foi o que entregou os minérios de ferro e abriu a Petrobrás. O que motivou à época o capitão Bolsonaro, em seu falso nacionalismo, a dizer que queria o FHC morto, porque ele abriu as comportas para o capital estrangeiro. Mas o que faz hoje o governo do capitão Bolsonaro com esse Paulo Guedes? Estão tentando vender todo o patrimônio do povo brasileiro!

AHT: Há alguma chance de Bolsonaro ter sucesso numa nova tentativa de golpe?

BM: Acho que não há chance. E se ele desse esse golpe ele não teria sustentabilidade para permanecer numa situação de golpe. Por quê? Porque golpe de Estado não é dado somente por militar. Ele é demandado, fundamentalmente, pelas classes dominantes. A classe dominante está dividida. Não está bolsonarista.

Nós temos visto esses manifestos saindo recentemente… Então, a classe dominante não está com ele. As camadas médias altas, tradicionalmente golpistas quando se unem, não estão com ele. Ele está se esvaindo. As Forças Armadas estão divididas. A Igreja está dividida. Quem está com ele são essas igrejas neopentecostais, mas a Igreja Católica não está com ele, os espíritas não estão, os evangélicos de igrejas tradicionais não estão. Então, há uma divisão.

E não é o foco hoje do império norte americano ter um governo ditatorial do capitão Bolsonaro no Brasil. Seria até um problema a mais para o império norte americano. E ele não tendo essas forças coesas não há como se manter no poder, ainda mais numa situação de crise. Crise da pandemia, crise da economia.

Nós vivenciamos um momento hoje de perda substantiva (do poder aquisitivo), um desemprego muito grande. O esvaziamento do valor da moeda. Isso aí é impressionante. E qual é a segurança para os investidores virem para o Brasil nesse governo bolsonarista? Eu moro aqui em Ipanema, saio e vejo uma miséria absoluta. Mendigos… Três pedintes por quarteirão buscando esmola. Por que a ditadura, iniciada no golpe de 64, acabou? Porque o Brasil entrou numa crise econômica profunda.

Hoje, eu vejo um quadro quebrado. Tem muito mais gente do povo pedindo o Impeachment do que a permanência do Bolsonaro ou querendo ele como ditador. Não vejo condições concretas nem ao nível objetivo nem subjetivo, porque ele não tem organização suficiente para desencadear o golpe.

Ele blefa com as Forças Armadas. As Forças Armadas, no meu sentido, não acompanharão o capitão Bolsonaro num golpe. Não acredito que o Exército do qual fiz parte seja tão venal a ponto de ser todo comprado em troca de migalhas. Acho que a maioria está preocupada com as instruções e trabalhos internos.

AHT: E as polícias militares não lhe preocupam? O que acha de algumas análises que têm sido feitas apontando risco de insubordinação nas polícias?

BM: Com relação aos policiais militares, também acho que a maioria procura trabalhar. Além disso, tem as milícias bandidas. Veja que eles conseguiram queimar até o nome milícia, porque você sabe que na Espanha houve uma milícia revolucionária anti-franquista. E as milícias da Venezuela têm uma característica completamente diferente desses milicianos daqui. Lá, elas são complementares às Forças Armadas.

Eu não acredito que as polícias tenham força para um golpe, porque acho que o Exército está dividido, não acompanha esse capitão. E eu discordo de um termo que tem sido usado muito pelo coronel Pimentel (oficial da reserva que têm dado muitas entrevistas). Ele fala em “partido militar”. Ele criou essa hipótese de um partido militar que vai jogando para se manter. Eu discordo. Não existe essa coisa. Partido ou é de classe social, ou é burguês, ou é revolucionário ou, ainda, envolve jogos de interesses monetários. Mas não um partido de uma categoria. Se ele vê um partido militar, daqui a pouco vai ter partido dos juízes, dos médicos, etc… Acho que não existe essa coisa.

O Pimentel é bom porque ele vem denunciando muitas coisas. E ele ficou muitos anos no quartel. Já eu sempre digo que sou um general de peito liso e mangas lisas. Ou seja, não tenho medalhas nem cursos. Não fiquei recebendo essa ideologização reacionária. Eu só recebi uma medalha na minha vida que foi a do Pacificador, mas não fui buscá-la. Até porque essa medalha faz referência a Duque de Caxias e acho meio estranho chamá-lo de Pacificador. Ora, ele foi colocando cobertor em tudo o que era corpo… A quem nunca viu, sugiro que assista ao filme “O Grande Ditador”, no qual o Charlie Chaplin faz uma crítica, recheada de ironia, aos generais medalhados.

AHT: 2022 está logo aí. Quais suas perspectivas?

BM: Bolsonaro vai entrar em 2022 de perna quebrada. Ele saiu muito mal dessa tentativa frustrada de golpe, porque, dentro da própria direita que o acompanhava, já tem gente na cadeia e tem um exilado no México (o Zé Trovão, falso líder dos caminhoneiros). Ele (Bolsonaro) vai cada vez mais se desprestigiar e perder essência em meio ao próprio grupo que o apoiava.

Bolsonaro entrou num processo meio esquizofrênico. Foi apelar para um missivista do golpe, o Michel Temer, que deu o golpe na Dilma. E o Temer já havia se movimentado para salvar Bolsonaro na época em que era presidente da Câmara e Bolsonaro subiu no palanque para dizer que queria matar FHC. Ali, Bolsonaro poderia ter sofrido um processo interno de cassação por ter ameaçado de morte o então presidente.

Bolsonaro é um absurdo. Sei que pode parecer discriminatório o que vou dizer, mas ele merece termos fortes: Bolsonaro é um aborto da natureza.

AHT: O senhor chamou Temer de “missivista do golpe”. Então, o que aconteceu em 2016 foi um golpe, general?

BM: Dilma sofreu um “golpe branco”. Branco que eu digo é porque não era vermelho do sangue. Nem foi revolução nem quartelada. Foi uma articulação entre a classe dominante, grande parcela das camadas médias, uma mobilização de rua permanente, que já vinha de 2013, dentro do processo, e o parlamento também contra ela, porque ela não tinha jogo de negociação, como o Lula ou o Temer têm. Ela teve toda a dignidade, mas já estava fraquejando, compondo com o neoliberalismo, com um ministro da Fazenda neoliberal. Ela devia ter ido para a rua defender o governo dela, mas se acuou.

AHT: O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, revelou em livro ter planejado com o Alto Comando um tuíte, disparado em 2018 e lido no Jornal Nacional, que, na época, influenciou os juízes do STF a não soltarem Lula. Como o senhor avalia isso?

BM: Olha, Marx diz que a história não se repete, quando se repete é como farsa. Nós temos o Tiradentes como símbolo da nossa independência, um mártir. Antes nós tivéssemos tido no Brasil um Simon Bolívar, um nome mais forte, que tinha projeto. Porque Tiradentes não era um homem de grandes projetos nem grande formação como era Bolívar, mas Tiradentes é o nosso mártir. Simbolicamente, ele não entregou os envolvidos e foi martirizado. O Villas Boas não levou nem um empurrãozinho e já entregou o alto comando todo!? O comando do Exército é que decidiu fazer essa pressão. Então, ele vai entrar para a história não como o Tiradentes, mas como Joaquim Silvério dos Reis. Cada um entra para a história pela porta que deseja. Me desculpe o Villas Boas, mas ele não tinha que ter pressionado o poder judiciário. Isso não é função de militar. Ele poderia até achar que o Supremo às vezes vacila. Eu também às vezes acho. Mas o que ele fez não é função de militar. O que é um militar? Nada mais é do que um funcionário público fardado submetido à hierarquia. Tem que prestar continência, tem que se ater às ordens, tem que ter disciplina, essas coisas…

Nós vivemos numa democracia burguesa. Essa palavra (democracia) até poderia ser colocada entre aspas, porque o poder fundamental é da classe dominante. Ruy Barbosa dizia: “maldito o país que tem uma ditadura do judiciário”. Porque, nesse caso, o povo não tem mais a quem recorrer. Sabemos que o judiciário também escorregou. Agora ficou muito claro que aquele juizeco de Curitiba (Sérgio  Moro) e aquele representante do Ministério Público, o Dallagnol, armaram um jogo para prenderem o Lula, para ele não ser candidato e para efetivarem esta mixórdia. E o Moro é tão descarado que aceita ser ministro da Justiça do sujeito que ele beneficiou. Agora o Moro levou um pé do Bolsonaro. O quadro é esse aí.

AHT: Por fim, gostaria de lhe pedir que comentasse uma frase que o senhor sempre gosta de dizer: “Se quiser ter um bom Exército, prepare uma boa sociedade”.

BM: José Saramago dizia: “eu não sou pessimista, a sociedade é que é péssima”. Como é que você vai querer ter um Estado bom, as Forças Armadas bem politizadas no bom sentido no quadro da nossa sociedade? O militar sofre lavagem cerebral na sua formação. Mas e os médicos reacionários que nós temos no Brasil sofrem lavagem cerebral onde? É a própria realidade da sociedade que faz eles serem assim. Então, é nesse sentido que eu afirmo: se você quiser preparar um bom governo e um bom Exército, prepare uma boa sociedade. Eu já disse em outra entrevista que o fã clube do Ustra está no governo. Mas está também na sociedade. Quantas pessoas estão ainda por aí batendo palmas para o governo e pedindo AI-5? O Ustra cometeu absurdos como torturar mãe na frente dos filhos ainda crianças. E por que nunca foi punido? Porque a sociedade civil é fraca.

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Eduardo Azeredo Costa: “O coronavírus está se lixando para o Bolsonaro”

Por Ana Helena Tavares, jornalista, editora do QTMD?

Em março de 2020, o médico sanitarista, doutor em epidemiologia, Eduardo Azeredo Costa concedeu entrevista para o QTMD? e disse enfaticamente: “O desastre Bolsonaro é muito maior do que o coronavírus”. No último dia 09 de setembro, um ano e meio depois, em nova entrevista a este site, ele analisa que ter Bolsonaro na presidência “é um contrabônus extra”, que favorece a disseminação do vírus, porém afirma que, refletindo sobre o assunto ao longo deste tempo, chegou à conclusão de que “o coronavírus está se lixando para Bolsonaro”. Assim como está se lixando para você que lê este texto, para quem o escreve e para o próprio entrevistado.

Arrogância da humanidade

“Acho importante dizer o seguinte: nós estamos numa posição arrogante enquanto humanidade, eu diria, nesta pandemia. Como se fosse o nosso direito de sobreviver e que não importasse o resto. Arrogante acharmos que podemos fazer isso, quando, na verdade, estamos sendo derrotados por uma estrutura biológica mais simples do que a nossa e, por isso mesmo, mais plástica. Ela consegue se flexibilizar e encontrar respostas. Esse bichinho é muito malandro. Está nos dando um banho”, sintetiza Azeredo Costa. Assista a este trecho da entrevista no vídeo a seguir:

Máquina de propaganda

Com a experiência de quem trabalhou na Organização Mundial de Saúde na época da erradicação da varíola e por 30 anos na Fiocruz, tendo sido diretor de Farmanguinhos, Costa critica severamente a “máquina de propaganda da indústria farmacêutica”, que, para ele, tem favorecido a Pfizer e desacreditado outras vacinas, como a CoronaVac. Ele sustenta que a vacina oriunda da China e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan “é boa, com uma estrutura antiga, muito mais segura”. O problema, ele brinca, é que a CoronaVac “dá tão pouca reação que há quem a tenha apelidado de água benta. Talvez com água benta Deus ajude mais”.

Mistura de vacinas: uma má prática de saúde pública

Nesta entrevista, Costa fala ainda sobre a terceira dose da vacina, comentando a crítica feita pela Organização Mundial de Saúde que apontou questões éticas porque muita gente no mundo ainda não tomou nem a primeira dose, especialmente nos países mais pobres. O epidemiologista concorda avaliando que, nesse cenário, “do ponto de vista da equidade, é uma injustiça que se esteja aumentando mais a proteção de quem já tomou duas doses”. Porém, ele vê base científica para esta dose de reforço: “como há evidências de que vai caindo a imunidade, a dose de reforço é importante para mantê-la alta. É importante não haver mais gente transmitindo”, defende.

No entanto, ele se diz contrário à mistura de vacinas. “Essa coisa da ‘misturança’ é o seguinte: importaram 200 milhões de doses da Pfizer e querem de todo jeito fazer alguma coisa para usá-la. (…) A maioria da população brasileira mais velha tomou CoronaVac, porque no começo só tinha ela. Então, tomá-la como reforço, já tendo funcionado, é bom, dá segurança. Misturar não é tão grave numa situação em que não haja outra opção, ou numa situação particular ligada a reações adversas, mas não é uma boa prática de saúde pública planejá-la fora destas situações especiais”, assegura o sanitarista. Sobre a variante Delta, que se espalhou inicialmente pelo Rio de Janeiro, ele alerta que as crianças têm maior potencial de transmiti-la e que precisam ser vacinadas. “A única vacina que dá para vacinar crianças é a CoronaVac. Outras vacinas provocariam muitas reações em crianças sem o mesmo benefício individual”, garante.

Medidas futuras: não dá para imitar o Ibrahim Sued

Falando sobre as medidas de saúde pública que possivelmente precisarão permanecer mesmo após a pandemia, Costa recorreu a uma frase de um famoso colunista social para apontar o que não deve ser feito: “No caso do coronavírus, que em pouco tempo pegou tanta gente, é preciso manter a vigilância epidemiológica e a informação para ação imediata. Não é como o Ibrahim Sued dizia: ‘agora que vocês estão bem informadinhas, a demain’. Não, é informação para a ação. Não é só comunicar. É comunicar para poder implementar medidas”, conclui.

A seguir, as palavras do entrevistado em detalhes:

Ana Helena Tavares: Conversamos no início da pandemia e você via o Bolsonaro como pior do que o Coronavírus. Como vê isso hoje?

Eduardo Azeredo Costa: Esse páreo ficou complicado. Porque cada um com suas particularidades. Nós temos esse marco de ter conversado sobre a pandemia lá no começo. No início, eu achava que não ia durar tanto tempo o caos. Achava que ia ter uma resolução em tempo mais curto. Temos um belo exército de agentes de saúde no Brasil inteiro que poderiam ter informado e ajudado a população. Mas o Bolsonaro, pior do que o vírus, assumiu o lugar do desastre. Mandou através do Mandetta, que a atenção primária ficasse em casa. No ano passado, quase tudo foi muito mal conduzido. Até que veio a vacina e ajudou a colocar um norte mais visível, atropelando até a ira de bolsonarista contra medidas de combate à pandemia.

Bolsonaro fez tudo ao contrário do que deveria ter sido feito e nós todos vimos o resultado. O famoso bate-cabeça dos estados, desarticulando todo um sistema que é um pouco complexo de se mexer. É preciso ter uma autoridade coordenando centralmente as várias partes. Ela não existindo, o que a gente viu foi isso: os estados tentando resolver, descoordenados. Conseguiram alguns se articular e até tentar fazer aquisição direta de vacinas, que a ANVISA não aceitou, porque está bolsonarista na essência.

Então, o que nós vimos foram esforços não frutificarem (por parte dos estados), inclusive em relação à ativação de uma vigilância epidemiológica, porque vários municípios não os acompanhavam. Porque foi cada um por si, trabalhando na ausência de uma liderança nacional, dependendo do projeto eleitoral e crenças sanitárias de cada governador e de cada um dos prefeitos. Enfim, cada um tomou as medidas que tomou de acordo com seu entendimento das necessidades políticas e sanitárias locais.

O coronavírus está se lixando para o Bolsonaro. Ele se aproveita do Bolsonaro. Está se lixando para mim e para todo mundo. Ele tem a sua estratégia de sobrevivência. A cada passo que a gente dá, ele procura outro para sobreviver. Venho fazendo essa reflexão e acho importante dizer o seguinte: nós estamos numa posição arrogante enquanto humanidade, eu diria, nesta pandemia. Como se fosse o nosso direito de sobreviver e que não importasse o resto. Arrogante acharmos que podemos fazer isso, quando, na verdade, estamos sendo derrotados por uma estrutura biológica mais simples do que a nossa e, por isso mesmo, mais plástica. Ela consegue se flexibilizar e encontrar respostas. Esse bichinho é muito malandro. Está nos dando um banho.

É verdade que Bolsonaro atrapalha, mas também não podemos ser cegos. Na maioria dos países, com outros líderes, alguns deles muito mais positivos do que aqui, também as coisas estavam acontecendo mal. Isso é uma coisa que não dá para esconder. Nós tínhamos o problema do nosso enfrentamento, mas outros países que não tinham os mesmos problemas também sofreram bastante. Então, nós tínhamos que ver que não adiantava só focar na questão da gestão Bolsonaro. Tínhamos que mobilizar o maior número de secretarias e de pessoas para o combate. Porque, quando a gente acha que só a gente por direito vai sobreviver e outras não, eu chamei de arrogância, mas é também uma negação da realidade. O cara pensa: sou muito poderoso! E nega a realidade.

Olha o banho que ele (o coronavírus) está dando agora, por exemplo, naquela “super” vacina da Pfizer. Vemos os EUA bombando com a doença. Israel, que foi o campo de prova da Pfizer, fez tudo direitinho, tem todos os recursos, sem nada que atrapalhe, está lá às voltas com o vírus. As vitórias são fugazes, aí começa-se a achar que as vacinas dão uma imunidade de curta duração, etc. Então, você vê que os problemas estão em todos os cantos e temos que aprender com eles. Agora, claro que é um contra bônus extra ter um Bolsonaro na presidência.

AHT: Você tem muita experiência com vacinas. Como tem visto o tratamento dado às diferentes vacinas? Pode-se dizer que alguma é melhor ou pior do que a outra?

Eduardo Azeredo Costa: A questão é a seguinte: nós temos uma máquina de propaganda da indústria farmacêutica que detém a propriedade da Pfizer, que desenvolveu o produto (vacina) e trabalhou para vende-lo. A vacina da Pfizer é uma vacina que todos tinham que ter muita precaução por usar uma tecnologia muito nova, sobre a qual não se tinha muita segurança. Eu sou uma pessoa de mais precaução quando se trata de uso em larga escala na população. Mas ela passou (nos testes).

E temos agora uma discussão, talvez de pouca relevância, que mostra os interesses do Bolsonaro contra a  CoronaVac. Por quê? Porque o governo comprou 200 milhões de doses da Pfizer e não têm como em dizer que isso é não bom. Ótimo para a Pfizer que tem muito poder, vive munindo os jornais e toda a imprensa para dar boas notícias. Já a CoronaVac só tem o poder do estado de São Paulo, porque os chineses não têm possibilidades de defendê-la aqui. Mas é uma vacina boa, com uma estrutura antiga de produzir vacinas, muito mais segura. É uma vacina que pode ser aplicada em crianças, claramente, pelos estudos que já estão feitos.

Então, sou uma pessoa que, do ponto de vista técnico, diria que a CoronaVac responde mais às necessidades do Brasil do que a Pfizer. Mas a vacina da CoronaVac dá tão pouca reação que há quem a tenha apelidado de água benta. Talvez com água benta Deus ajude mais, não sei.

AHT: A OMS fez duras críticas ao uso de uma terceira dose ou dose de reforço, levantando questões éticas. Como você vê isso do ponto de vista ético e científico?

Eduardo Azeredo Costa: Nós temos dois problemas diferentes. Do ponto de vista mundial, é verdade que muita gente não tomou dose nenhuma. E usar uma terceira dose consome, porque a produção, embora já seja muito grande, ainda não dá para todo mundo. Então, do ponto de vista da equidade é uma injustiça que se esteja aumentando mais a proteção de quem já tomou duas doses. Estes estão sendo protegidos, mas não está protegendo todo mundo. Seria um problema ético nesse sentido. Agora, do ponto de vista científico, é interessante citar que essa decisão começou em Israel porque começaram a observar que, possivelmente, a imunidade estava caindo com o tempo.

E, num país de população grande (como no Brasil), mesmo uma vacina que tenha 99% de eficácia não vai proteger uma parcela grande da população. 1% de 200 milhões é 2 milhões. Então, é muita gente adoecendo e, como há evidências de que vai caindo a imunidade, a dose de reforço é importante para manter. É importante até para o mundo inteiro para não haver mais gente transmitindo. Aqui, há um fenômeno meio surpreendente. O Rio de Janeiro foi onde teve essa invasão e disseminação da (variante) Delta. Nós estamos acompanhando um pouco isso aqui e talvez possa lembrar um pouco o começo da pandemia, que no começa (a doença) pega nas classes médias, porque são os que viajam para o exterior. Mas nos outros estados não está acontecendo assim.

AHT: O que você acha da recomendação de misturar vacinas na terceira dose? Há quem diga que a CoronaVac não poderia ser usada nesse reforço. É verdade?

Eduardo Azeredo Costa: Essa história de que a Coronavac não pode ser usada como dose de reforço é bobagem. A Coronavac é muito boa para reforço. Achei muito boa a decisão de São Paulo de usar, especialmente nos mais velhos. Primeiro porque eles não costumam ter muitas reações adversas, mas as poucas que têm costumam ser mais graves neles. A maioria da população brasileira mais velha tomou CoronaVac, porque no começo só tinha CoronaVac. Então, tomar ela como reforço, já tendo funcionado, é bom porque dá segurança.

Misturar não é tão grave numa situação em que não haja outra opção, ou que uma reação adversa anterior acautele justificando o uso de uma diferente, mas não é uma boa prática de saúde pública. Essa coisa da “misturança” é o seguinte: importaram 200 milhões de doses da Pfizer e querem de todo jeito fazer alguma coisa para usar a Pfizer. É uma má prática, porque é fazer algo com um risco invisível sem necessidade. Pode até ser que não exista o risco, mas se há chance de existir, para que fazer? Quem já passou pela experiência com uma vacina deveria voltar a tomá-la.  Eu tenderia a manter a mesma vacina tomada em todos os grupos de idade. Isso depende da disponibilidade. Mas essa é uma boa prática de saúde pública. Misturar vacinas é uma má prática de saúde pública e digo isso com uma segurança absoluta, porque dilui responsabilidades dos produtores, aliás o que a big pharma quis desde o início da pandemia e está impondo.

Agora, há um grupo que a gente tem que olhar. São as crianças. Essa Delta tem uma particularidade, não de tornar-se grave nas crianças, mas fazer-se mais aberta e transmissível nessa faixa etária. Todos os estudos estão mostrando isso: as crianças têm um papel na transmissão (da Delta) que era praticamente nulo antes (nas outras variantes). Ou seja, nós temos que vacinar as crianças. E a única vacina que dá para vacinar crianças é a CoronaVac. Outras vacinas provocariam muitas reações em crianças, com baixíssimo risco de adoecer gravemente individual. Não é legal.

AHT: Pensando num cenário futuro de pós-pandemia, quais seriam as medidas necessárias de serem mantidas?

Eduardo Azeredo Costa: A última coisa é o lockdown. Eu nem sei direito o que nós chamamos no Brasil de lockdown. Chega a ser engraçado isso. Decretam o lockdown para tudo e todos. Para tudo. Fecha as portas, todo mundo se tranca em casa, coisas desse tipo. Eu sempre digo que se não houvesse gente que nunca parou, como quem produz comida, nós estávamos todos mortos de fome a essa altura. Então, não pode ser algo indiscriminado, mas seletivo segundo os riscos e de acordo com os serviços que cada um presta. Profissionais de saúde, por exemplo, nunca puderam parar, mas continuaram tendo riscos. Não pode ser uma coisa assim: chega o lockdown, todo mundo para e cada estado e município interpreta de um jeito. Isso não tem o mínimo de racionalidade. Em vez de um isolamento geral, tem que focar no local onde a situação está ocorrendo.

Agora, as outras coisas a gente sabe como é, porque temos essa experiência. Quase todas as doenças pandêmicas ficam circulando em baixos níveis. É difícil o desaparecimento total. Mesmo no caso da varíola, foi preciso ficar alguns anos vacinando, depois parou. No caso do coronavírus, que em pouco tempo pegou tanta gente, é preciso manter a vigilância epidemiológica e a informação para ação imediata. Não é como o Ibrahim Sued dizia: ‘agora que vocês estão bem informadinhas, a demain’. Não, é uma informação para a ação. Não é só comunicar. É comunicar para poder implementar medidas. As duas pernas têm que andar juntas. Uma equipe preparada para agir assim que haja a informação de um caso suspeito.  E vai lá, vacina todos ao redor, faz testagem e tal. Porque, o que vai acontecer? Daqui a dois ou três anos vamos estar com a população adulta vacinada e vão nascer crianças que não estão vacinadas. Nós vamos ter que manter uma vacinação infantil o quanto antes. Para adultos, tem certas doenças, como a da gripe, que necessitam de uma vacinação anual. Pode ser que a Covid também. Precisa mais tempo para analisar isso.

AHT: A pandemia envolve também questões psicológicas graves. Como sanitarista, qual sua avaliação disso?

Eduardo Azeredo Costa: Acho que tem gente que exagera e é ruim para a cabeça. As pessoas não estão bem por diversas razões, inclusive pela questão econômica, mas também porque estão com pouca conexão umas com as outras. Isso é fundamental para a humanidade. A gente não se dá bem sozinho, em qualquer coisa.

Infelizmente, o Brasil não trabalhou com vigilância epidemiológica, não trabalhou com inteligência e faz esses lockdown indiscriminados. Aí fica todo mundo apavorado sem saber o que fazer. Não saiam de casa! Não saiam de casa! Um absurdo. Uma caminhada num ambiente aberto, como a Lagoa aqui no Rio, só faz bem. O sol ajuda muito.

Os ambientes confinados é que são perigosos. Todo mundo juntinho à noite numa boate é problema. Igrejas, que são ambientes fechados, também. Ou ficar muito perto de pessoas que você não conhece. O que é preciso é que as informações sejam mais dirigidas (localizadas) e não ficar assustando todo mundo, como se ninguém pudesse relaxar nunca. Não dá. Vamos, pelo menos, relaxar por partes.

Eu acho que lidamos muito mal com tudo isso. Porque parte da mídia, que depende de propaganda e do poder econômico, para chamar atenção, precisa criar o pavor. Isso é exagero e o pior é que não é eficiente.

AHT/EAC

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