
Por Ana Helena Tavares* (texto, fotos e vídeos)
Era para ser apenas uma entrevista rápida. Inicialmente, difícil de ser conseguida, uma vez que pedida em cima da hora.
“Se você chegar aqui até às 12:30, ele te recebe. Depois, ele sai para agenda externa”, ouvi da secretária do gabinete de Eduardo Suplicy. Eram 11h e eu estava num hotel não muito longe da Câmara dos Vereadores de São Paulo.
Perguntei se havia alguma burocracia para entrar na Câmara. “Se você não vier armada, entra sem problemas”, brincou a secretária. Como eu poderia ir armada para conversar com um discípulo de Gandhi e de Luther King?
No dia anterior, eu havia entrevistado o líder do MTST Guilherme Boulos, na sede do Movimento (leia aqui). Sabendo que, em 2016, Suplicy havia sido preso em situação semelhante a que Boulos foi neste início de 2017, defendendo famílias sem teto, eu quis conversar com o ex-senador sobre isso.
Chegando ao gabinete de Suplicy, conheci a transexual Noélia, a secretária. Algum tempo depois, o próprio Suplicy veio à recepção e me convidou a entrar.
Eu disse a ele que eu havia adiado minha viagem de volta ao Rio por ter conseguido a entrevista com ele e que, em vez de voltar naquele dia, sexta-feira, 27 de janeiro, eu voltaria só no sábado.
Estava no horário do almoço e ele quis saber o eu ia fazer depois da entrevista. Eu disse que nada. E ele: “Nada não. Almoça comigo e me acompanha numa visita que vou fazer à Fundação Casa de Guarulhos. Isso vai ajudar a completar sua matéria”.
Irrecusável.
Na entrevista, Suplicy descreveu, com riqueza de detalhes, como ocorreu sua detenção em julho de 2016. Lembra de ter ficado no meio do confronto entre policiais, “com escudo numa mão, cassetete na outra e arma na cintura”, e os moradores que tentavam reagir. Retirado dali à força, Suplicy sentiu uma forte dor no braço esquerdo, que chegou a ter medo de quebrar.
Assista ao vídeo em que ele relembra o episódio: https://www.youtube.com/watch?v=5RMTz2iUsMI
Ele falou, claro, sobre a temática deste site: a democracia, dizendo sentir que “não vivemos uma democracia plena no Brasil hoje”.
Contou que, se estivesse no Senado, teria sido contrário ao Impeachment de Dilma por não acreditar que ela cometeu crime algum. E revelou que, no ano passado, sugeriu a Temer que fizesse um plebiscito por eleições diretas.
Assista: https://www.youtube.com/watch?v=Ck_ahXhVuDY
Para Suplicy, há pessoas que, mesmo eleitas numa democracia, tomam atitudes reprováveis. Nesse sentido, criticou duramente o muro que o recém-empossado presidente dos EUA Donald Trump quer construir na fronteira com o México.
“Pode agradar à Bolsa de Nova York, que está batendo recordes, mas… É algo que contraria o bom senso e a inteligência”, avalia.
Assista ao vídeo em que Suplicy fala sobre Trump: https://www.youtube.com/watch?v=j144iM-FOfk
Almoçamos, acompanhados de outras pessoas da equipe dele, num restaurante que fica atrás de uma padaria próxima à Câmara. Comentei com ele que estou escrevendo uma biografia de Dom Pedro Casaldáliga, que se chamará “Um bispo contra todas as cercas”. Também poderia ser contra todos os muros.
Chovia e Suplicy, um gentleman, sem guarda-chuva, não se preocupava em se molhar desde que os outros não se molhassem.
De volta à Câmara, secou os óculos e autografou um exemplar de seu livro “Renda de Cidadania – A saída é pela porta”, com o qual me presenteou em retribuição ao presente que dei a ele: um exemplar do meu livro “O problema é ter medo do medo”.
Após a entrevista e o almoço, chegamos à Fundação Casa com atraso, devido ao trânsito caótico de uma sexta chuvosa em São Paulo. Lá, Suplicy ministrou uma palestra justamente sobre o tema do livro. Uma temática à qual ele dedica sua vida.
Na Fundação, antes chamada de FEBEM, foi preciso deixar os pertences, incluindo celular e máquina fotográfica, numa salinha no térreo.
Subimos vários degraus até chegar a um salão no 3º andar, onde os internos nos receberam com festa, entregando um cartão com a frase: “Há duas coisas na vida que se você guardar você perde: conhecimento e afeto. Se você guarda, eles vão embora. A única maneira de ter conhecimento e afeto é reparti-lo”.
Declamaram versos que falam das grades amarelas, pelas quais entramos e saímos, pelas quais eles querem um dia sair de vez. Cantaram e dançaram.
Ver um homem que conhece os corredores do poder e é de uma das famílias mais tradicionais de São Paulo jogando capoeira com aqueles garotos é uma cena da qual minhas retinas jamais se esquecerão.
Eduardo Suplicy, que treinou boxe na juventude, ainda hoje pratica atividades físicas com frequência, mas ficou com dores na costela após a capoeira. Foi ao hospital à noite e logo liberado.
As dores foram justamente ao lado do braço esquerdo, em que ele ainda trata de uma tendinite por ter sido retirado à força pela polícia no ano passado quando tentava uma solução para o despejo de famílias, como ele nos conta no 1º vídeo desta matéria.
A Fundação Casa, ao menos a que visitamos em Guarulhos, é um centro de reabilitação com alta taxa de reintegração na sociedade.
Conheci garotos que apertam a mão das visitas como se agarrassem uma esperança. Que olham no seu olho como se olhassem por uma fresta de janela. Um deles sonha ser escritor. Já tem muita coisa escrita.
Na palestra que Suplicy deu para aqueles jovens, que eram em torno de 60, vivi o momento raro de declamar junto com ele a letra da música “Homem na estrada”, de Mano Brown, dos Racionais MCs.
A música termina com som de tiros, que Suplicy reproduziu fazendo gestos de como se tivesse uma metralhadora na mão: “Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! Pá!” Muitos dos jovens conheciam a letra de cor.
Suplicy explicou que um dos grandes objetivos da Renda Básica é oferecer liberdade de escolha e perguntou aos internos se, caso eles tivessem acesso a essa renda, estariam ali. A resposta em coro foi “não”.
Essa foi a segunda visita de Suplicy à Fundação Casa de Guarulhos. Ele havia ido lá antes e tinha prometido voltar. Nas duas oportunidades, deixou lá um exemplar de seu livro sobre a renda básica. A unidade tem uma biblioteca que aceita doações.
Uma das cenas que dificilmente vou me esquecer desse dia é a de um dos jovens pegando o livro de Suplicy, olhando para mim e me perguntando se o livro iria ficar lá. Eu disse que sim e os olhos dele brilharam.
Saí de lá com a certeza renovada de que uma sociedade não pode querer segurança sem que todos tenham assegurados seus direitos.
Num mundo onde cada vez mais grades e muros são vistos como solução para problemas sociais, é preciso reafirmar que a saída é pela porta.
Aberta. Para entrar e sair. Para ir e vir.
*Ana Helena Tavares é editora do site Quem tem medo da democracia?