Quando um gato vira leão – um tributo a Ted Kennedy

Voz tranqüila, porém firme, dedos apontados para os sonhos.

Por Ana Helena Tavares

Quando Collor se candidatou à Presidência da República, o exército de Roberto Marinho sabia que tinha uma arma na missão de elegê-lo: ele era um gato. Parece piada, mas é fato. Já vi muita mulher (instruída!) assumir que votou nele porque era “o mais bonito”. Agora em 2009, anos depois de o povo ter descoberto, com um paradoxal – e oportuno – empurrãozinho daquele mesmo exército, que gatos não põem mesa, vem ele querendo rugir no Senado. Só o que ele talvez não saiba é que para ser leão não basta rugir, é preciso que se consiga levar outros a rugirem junto ou a respeitarem o seu rugido.

Mas vocês talvez estejam pensando: “Que mau gosto fazer um tributo a Ted Kennedy e começar o texto falando do Collor!” Pois é, nem eu sei de onde me saiu essa idéia, mas é, sim, possível fazer uma relação de antagonismo entre as duas figuras.

Fernando Collor de Mello, assim como seu irmão já falecido, que era igualmente gato, teve desde sempre uma vida pessoal obscura. Poucos sabem, por exemplo, que seu pai, Arnon Afonso Farias de Mello, foi assassino de um senador. Os irmãos Kennedy, dois deles mortos precocemente, todos igualmente gatos, tiveram um pai mais exemplar. Todos os três, porém, tiveram uma juventude e, no caso de Ted, uma longa vida pessoal a que se pode tranqüilamente chamar de desvairada, incluindo conhecidos episódios de envolvimento com bebida.

Já na vida pessoal reside o antagonismo da relação que busco fazer aqui. Enquanto a de Collor se mostra um vale de sombras, a de Ted era um livro promíscuo, porém aberto.

No entanto, ao povo de nada importa a vida pessoal de um homem público. Importa sua combatividade, importa as causas pelas quais luta e as batalhas que consegue vencer nessa selva chamada política. E aí mora o grande antagonismo deste texto. Collor é um perdedor não por ter sido expelido da presidência pela mesma mão que o colocou, como num sórdido jogo de marionetes, mais do que isso, é um perdedor não por ter perdido alguma causa de interesse público – é um perdedor porque nunca às teve. Ted Kennedy, sem nunca ter chegado à presidência dos EUA, era um homem de causas públicas, um agregador nato, combativo até o fim naquilo em que realmente acreditava, o que lhe justificava o título de “o leão do Senado”.

Em tempos de omissão e, em alguns casos, até de contribuição direta de seu país, Ted Kennedy rugiu alto contra a ditadura no Chile, o Apartheid na África do Sul e a guerra do Vietnã. Embora certamente não tenha conseguido ver no mundo todas as mudanças com as quais sonhava, Ted levou muitos a rugirem junto. Ainda assim, como não poderia deixar de ser, foi, muitas vezes, voto vencido, mas nunca desistia e, com toda razão, gostava de vangloriar-se de ter lutado. Gostava, por exemplo, de anunciar que seu voto mais bem acertado no Senado foi aquele em que disse um sonoro não à invasão do Iraque. E ele estava mais do que certo por ter orgulho disso. Também eu teria – e muito. Sua atuação nesse e em outros casos de interesse mundial foi, claro, digna de toda admiração. Mas, em termos de política interna, sua grande causa talvez tenha sido a reforma na Saúde. Lutou sem trégua por um sistema público, no estilo europeu, ferozmente condenado pela direita, pelas seguradoras, pelos médicos, pelos hospitais – o leão foi bombardeado de todos os lados e jamais fraquejou.

Há poucas ligações de Ted Kennedy com a política brasileira. Não consta, por exemplo, que ele tenha tido o desprazer de conhecer pessoalmente Fernando Collor. Mas pelo menos um político brasileiro ele conheceu de perto, sobre o qual digam o que quiserem, pra mim foi um dos maiores – um leão de botina e bombacha, tchê – Leonel Brizola. Pois muito bem, o próprio. Quando Brizola foi expulso do Uruguai, em 1976, por ordem de Geisel, Ted Kennedy o recebeu como amigo nos EUA. Há quem diga que da amizade entre os dois nasceu a luta de Ted Kennedy contra a ditadura no Brasil.

Como é do conhecimento de muitos, Brizola não era homem de bajulações. Nesse sentido, é digno de nota o apreço especial que ele nutria pelo amigo Ted. Algo de fato incomum para Brizola, que definia Ted Kennedy como “um inconformado, um verdadeiro democrata na luta contra toda falta de liberdade.”

O fato é que com seu sorriso fácil, sua voz tranqüila, porém firme, dedos apontados para os sonhos, era mesmo muito difícil resistir aos discursos de Ted. Não eram vazios, menos ainda demagogos, como os de tantos. Aproximar-se dele era sinônimo de respeito, mesmo para quem estava em trincheiras opostas – lá estava Bush em seu enterro, por essa nem ele esperava. Era sinônimo de querer ouvir, mesmo para quem tanto gostava de falar, como era o caso de Brizola.

Leão é líder, e o olhar do líder não amedronta – agrega.

03 de Setembro de 2009,

Ana Helena Tavares

Quando um gato vira leão na Revista Médio Paraíba

Quando um gato vira leão no site youPode

Quando um gato vira leão no Recanto da Letras

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Cabelo fixo a Gardel – Com vocês, JK

Seresteiro, namorador, bom de papo, de mesa e copo, o presidente é bossa-nova sem receios e se aproxima do perfil do latino sedutor com ares civilizados de estadista. Pé-de-valsa, roupa recortada, cabelo fixo a Gardel com pasta Gumex, JK é popular sem perder o porte. Passa do banquete ao rega-bofe sem cerimônia. Seu gosto pessoal tem a marca do ecletismo. Do arroz carreteiro ao cerimonial sem sobressaltos. Era novo no país um político natural, sem a menor afetação ao falar, que desfilava informalidade sem forçar a barra. Era porque era.

Por Ana Helena Tavares

O HOMEM JK

De Diamantina para o mundo

Nascido em Diamantina, Minas Gerais, no dia 12 de Setembro de 1902, Juscelino Kubitschek de Oliveira foi um dos mais importantes políticos brasileiros. Formado em medicina pela Universidade de Minas Gerais, antes da presidência, JK foi prefeito de Belo Horizonte, governador de Minas Gerais e deputado federal.

O estilo JK

O estilo conciliador despertava inveja. Até os adversários admitiam: bastava conhecer sua simpatia para baixar a guarda.
JK em si, com seu jeitão, sinaliza uma postura de comportamento e cultura: concentra imagem da cordialidade e “boa gente” nacional. Seresteiro, namorador, bom de papo, de mesa e copo, o presidente é bossa-nova sem receios e se aproxima do perfil do latino sedutor com ares civilizados de estadista. Pé-de-valsa, roupa recortada, cabelo fixo a Gardel com pasta Gumex, JK é popular sem perder o porte. Passa do banquete ao rega-bofe sem cerimônia. Seu gosto pessoal tem a marca do ecletismo. Do arroz carreteiro ao cerimonial sem sobressaltos. Era novo no país um político natural, sem a menor afetação ao falar, que desfilava informalidade sem forçar a barra. Era porque era.
Seu próprio repertório é direto, logo moderno. O Conjunto da Pampulha, criada entre 42 e 44, quando JK era prefeito de Belo Horizonte, marca o seu encontro com Niemeyer e funda os antecedentes de Brasília.

Exílio e morte

Depois do Golpe de 64, JK tem seus direitos políticos cassados, sendo obrigado a exilar-se em 66. Clandestino na cidade que criou, recusado pela ABL, submetido a interrogatórios ridículos, sua morte em 22 de agosto de 1976, esmagado num Opala 70, no Km 165 da Presidente Dutra, revela a dramaticidade de uma infeliz coincidência: morre em acidente automobilístico – a indústria que mais impulsionou.

CONTEXTO HISTÓRICO – A ÉPOCA JK

“Traduzo esse tempo como a fome de reinventar e fundar uma luminosa, fraterna e mestiça idéia de Brasil.”
(Darcy Ribeiro)

JK e os anos dourados

Os quatro anos de Juscelino Kubitschek na presidência foram anos excepcionais para a construção de uma nova identidade nacional. O carisma de JK contribuiu para a explosão cultural no início dos anos 60.
No período de seu governo, o Brasil viveu o surgimento da Bossa-Nova e do Cinema Novo, além da vitória do escrete canarinho na Copa de 58.
Nenhum período histórico explode por acidente. Uma série de movimentos, tendências, modismos, comportamentos e personalidades tomavam forma desde o início dos anos 50 e passaram pelo governo JK nutridos pelo excepcional momento de criação pelo qual passava o país. Seu governo adotou prioridades estruturais e a cultura não foi meta explícita, como política pública. No entanto, ocorreu uma extraordinária virada na auto-estima nacional.
Os sinais de mudanças e ritos de passagem para o mundo urbano e industrial criaram uma aura de celebração do progresso e entusiasmo em diversos níveis. Esse contexto viria a contagiar pessoas, grupos e experimentos estéticos que fossem tradutores desse “novo Brasil”.
Se JK não interrompia processos, nem tinha uma política específica e direta para linhas culturais, no mínimo alimentava o imaginário nacional com diversos signos. O clima geral de invenção contagiava o agito institucional e pessoal dos artistas, pensadores e organismos. Foi como um lapso emocional na carga pesada das seculares dependências e misérias brasileiras.
Tais processos culturais, ricos em contestação, invenção e ousadia, viriam a ser interrompidos pela repressão e diluídos pelo mercado na época da ditadura.

Um sonho chamado Brasília

Brasília foi classificada por JK como meta síntese. E nela residiu seu momento mais inspirado. Criava sob Brasília alguns fundamentos de que havia um sertão a ser digerido ou devorado. Realizava-se, com a nova capital, a expressão mais estética e científica no avanço do urbanismo e da arquitetura.
Um povo se fazia reconhecer enquanto construía algo um pouco abstrato nos monumentos e conceitos, mas concreto no sentido de que significava uma vida melhor, revolucionária da miséria em que viviam. Ao menos naquele momento, Brasília determinou a essência de um entendimento do Brasil reposicionado no mundo.

CONTEXTO POLÍTICO – O GOVERNO JK – “50 ANOS EM 5”

“Deste Planalto Central, desta solidão que em breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã de meu país e antevejo esta alvorada, com fé inquebrantável e uma confiança sem limites em seu grande destino”
(Juscelino Kubitschek, 2 de outubro de 56)

Conjuntura nacional

A eleição do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira e de seu vice, o gaúcho João Goulart, representantes da coligação PSD – PTB, marcou um período de graves incidentes institucionais que revelavam a fragilidade institucional de um regime político que, nos momentos de crise, se via obrigado a apelar e acatar o supremo arbítrio dos militares.
JK e Jango derrotaram nas urnas os candidatos Juarez Távora (UDN), Ademar de Barros (PSP) e o ex-dirigente fascista Plínio Salgado.
A oposição udenista encabeçada por Carlos Lacerda não aceitou o resultado e tentou impedir a posse, através de um golpe de força.
Tentou primeiro no congresso impugnar a eleição sob o argumento de que tinham vencido sem maioria absoluta. A constituição da época, no entanto, não pregava esse critério como definidor do pleito.
A situação institucional agravou-se quando o vice empossado após o suicídio de Getúlio Vargas, Café Filho, teve que renunciar por motivos de doença. Assumiu o posto o presidente da Câmara, Carlos Luz, defensor das idéias de Lacerda e contrário à posse de JK.
A ação foi impedida pelo Marechal Lott, ex-ministro de guerra, que defendia o processo eleitoral e a via constitucional. Em Novembro, Luz foi deposto. O Congresso entregou o poder a Nereu Ramos, vice-presidente do Senado.
Com o apoio de Lott, Ramos governou até janeiro de 1956, quando entregou o cargo a JK. Estava agora no poder o principal idealizador do modelo nacional-desenvolvimentista.

Habilidade política

JK promoveu o desenvolvimento e a modernização do país, infundindo no povo brasileiro um otimismo contagiante.
Político de extrema habilidade, JK foi capaz, logo que tomou posse, de conciliar grupo divergentes que ameaçavam seu futuro. Adquiriu a fama do presidente sempre disposto a perdoar.
De imediato, lançou um Plano de Metas com 5 grandes objetivos: energia, transportes, alimentação, indústria de base e educação. Das 30 propostas do plano, apenas as relacionadas à educação e à agricultura não foram cumpridas. Para financiar seu plano, jogou todos os custos para o governo seguinte, podendo, assim, rejeitar o empréstimo do FMI (Fundo Monetário Internacional) e evitar uma reforma cambial.
As condições impostas pelo fundo para firmar o acordo de US$ 200 milhões desagradaram ao presidente, que seria obrigado a conter a inflação em 6%, reduzir salários, abolir o incentivo à agricultura e, o que era pior, retardar a construção de Brasília. Nada foi assinado.
No âmbito internacional, teve o mérito de criar a Operação Pan-americana, cuja principal finalidade era despertar as esperanças e energias dos povos americanos, principalmente da América Latina, com o objetivo comum de combate ao subdesenvolvimento.

Expansão industrial


Sua gestão foi marcada pela participação extensiva do capital estrangeiro na economia brasileira. É o período de forte expansão industrial (na foto, JK discursa durante a inauguração da Ford). Durante seu governo, a produção industrial cresceu 80% e a taxa real de crescimento atingiu 7% ao ano.

O fantasma da inflação

Paralelamente ao desenvolvimento industrial, JK recorreu várias vezes à emissão de dinheiro, jogando o país numa inflação crescente. Essa medida, que visava atender às reivindicações salariais e às solicitações de crédito, jogou o país em índices inflacionários nunca vistos.

Nos braços do povo

Com a visão do estadista que pensa nas gerações futuras e a paciência do político, JK chegou ao fim de seu mandato consagrado pelo povo, consagração que o acompanhou até sua morte e dura até hoje.

Obs: Este texto em que traço o perfil de JK, de sua época e de seu governo é fruto de uma vasta pesquisa que desenvolvi sobre o assunto. Publico hoje aqui ainda a tempo de lembrar os 33 anos de sua morte, completados no último dia 22.

27 de Agosto de 2009,

Ana Helena Tavares

Leia também de minha autoria: “O dom de irradiar esperança – JK, Lula e a imprensa

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