Sobre a diferença entre democracia e liberdade

Texto que escrevi como apresentação pro meu novo site: “Quem tem medo da democracia?” – clique aqui para acessar

Democracia é uma praça cheia de gente.

Pessoas de todos os sexos, etnias e credos, que, dentro dos limites de uma Constituição representativa, que cria parâmetros e norteia, não têm medo de expressar suas opiniões e, ainda assim, convivem em harmonia, tolerando pacificamente o contraditório.

Seja a Cinelândia, das passeatas com milhares, seja aquela pracinha de sua cidade interiorana. Lá na velha Athenas, foi assim que a palavra democracia foi criada: para ser abrigada num púlpito público, localizado no centro da pólis (denominação dada às antigas cidades gregas que deu origem ao nome política), cujo objetivo era dar voz a todos, sendo respeitada a vontade soberana da maioria. Vale o que mais de 50 por cento acham bom.

Esta vontade, muitas vezes, pode ir contra nossa vontade. Quem mora, por exemplo, num condomínio, sabe bem o que é não ser livre para alterar a fachada de sua varanda. Mas, ao coro dos insatisfeitos, resta contentar-se e conseguir convencer os outros de suas idéias. Dá trabalho, claro. Ser déspota é imensamente mais fácil, porque prosperar numa democracia requer gasto de saliva e talento para o diálogo – palavrinha mágica.

Quanto mais vemos os outros sofrerem, mais gostaríamos que o mundo fosse assim: pessoas dialogando em paz. É, por assim dizer, um ato solidário, conflitante com o ódio (de desapego a si e à sua vontade, quando esta perde). E disto só os tiranos opressores têm medo. E como o mundo está cheio deles! Há até aqueles que querem discursar nas praças de outros países…

Liberdade é uma estrada rumo ao infinito.

Quando este rumo é roubado, tudo parece cansaço. Mas a liberdade é um raio de sol, onde nos apegamos e nos refazemos. É um oásis alucinógeno que nos faz caminhar sedentamente até ele. Mas, se acaso lá chegássemos, e nos deparássemos com muitos lagos, viria de certo a forte dúvida: em qual beber?

Liberdade não tem norte e é conflitante com o amor.

Senão vejamos… Consta que John Lennon, autor da frase – “Amo a liberdade, por isso deixo tudo o que amo livre” – morria de ciúmes de Yoko Ono. E o que é o ciúmes senão o medo de perder o que se ama? E como amar sem ter ciúmes? E o que é o amor senão um “prender-se por vontade”? Seja a alguém, a algo ou a uma terra, quem ama cuida e quem cuida cria laços, elos de uma corrente imaginária mais forte do que as físicas.

Mas liberdade é também ter o direito de escolher a quem ou a que se prender. O problema nas ditaduras é que quem escolhe isso não é nem você nem a maioria – é a minoria “iluminada” e embebida de ódio. Tiranos têm raiva da própria incompetência e temem a democracia porque sabem que não conseguiriam se destacar não fosse pela força. Seu medo é gerado pelo ódio.

E o ódio nada mais é do que uma vontade de ter “licença para matar” ou destruir. O agente secreto da rainha inglesa tinha, mas seguia ordens.

Liberdade é um faroeste sem xerife.

É, no fundo, uma utopia. Não creio que tenha havido na história da humanidade alguém totalmente livre de amarras afetivas e sociais. Até os mais libertários revolucionários não estão a salvo de influências externas. Nesse sentido, a busca pela liberdade talvez se configure numa desesperada tentativa de fuga. Às vezes, uma fuga de si mesmo.

Como se pudéssemos enganar nossas dores, a liberdade é um querer intenso, que, quanto mais sofremos, mais queremos. É, por assim dizer, um desejo solitário (de desapego ao magnetismo do que está à sua volta), pois dá asas a todas as vontades individuais, sem observar as dos outros (tantas vezes conflitantes) arcando com o caos que isto pode gerar.

E, por mais saciado que este desejo nos pareça, sempre desejaremos mais liberdade. Este é o desejo de todos os desejos: desejar mais e mais. Porque, se não houver o que desejarmos, que graça tem o mundo? Apenas tédio e inércia.

Mas o problema é: o que desejar? Muitos não sabem nem querem saber. A prisão, não a física, mas a mental é cômoda. Libertar-se é perigosíssimo. E disto todo ser humano tem medo.

Eu tenho. É o novo ao seu alcance. É o mergulho no desconhecido. É a anarquia. “Graças a Deus”, diria Zélia Gatai, uma anarquista de carteirinha que passou a vida defendendo a democracia. E que lindo era o amor dela pelo nosso Amado.

Sim, é preciso amar para ser democrata, mas a liberdade plena, como utopia que é, conflita tanto com o amor como com o ódio.

Senão vejamos… O ódio, expresso em palavras ou atos, num regime (verdadeiramente) democrático, te levará à cadeia; num mundo livre (caso existisse) te levaria a ser morto. É a (falta de) lei da selva.

O amor num mundo livre? Só quando a humanidade for reinventada.

Sugestão? Ame numa democracia.
Ana Helena Tavares

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Fordosofando – As raízes de uma mentalidade

No que ele estaria pensando hoje?
No que ele estaria pensando hoje?

“Pensar é o trabalho mais pesado que há, e talvez seja essa a razão para tão poucos se dedicarem a isso.” (Henry Ford)

“Gosto bastante de trabalhar aqui”, diz o empregado a seus companheiros. “Tenho que rever o sistema, ele é pago para produzir, não para gostar”, imaginem quantos patrões ainda pensam assim por trás do vidro.

Por Ana Helena Tavares (publicado também na minha coluna na revista “Médio Paraíba”)

Henri Ford é um exemplo de como um ser pensante usou de sua aparente benesse de aumentar salários com o único objetivo de tornar seus empregados cada vez mais dependentes do emprego de “sua” fábrica e vendendo seu trabalho a “seu” dono, como ele mesmo dependia de empregá-los e usar seu trabalho para sua própria riqueza e poder.

Em sua época, serviu de exemplo para outros donos de fábrica que buscavam unir capital a trabalho fortificado pela mutualidade de sua dependência. Trancados em uma fábrica que era ao mesmo tempo um campo de batalha e um lar natural para esperanças e sonhos.

A dependência de capital e trabalho fazia com que cada parte fizesse de tudo para manter a ordem que estava instalada. Uns compravam e vendiam, e os trabalhadores tinham que se manter saudáveis, fortes e capacitados. Cada lado tinha “interesses investidos” em manter o outro lado em forma.

Deste modo, a “remercantilização” do capital e do trabalho torna-se a principal função e ocupação da política e da suprema agência política, o Estado, que estava “além da esquerda e da direita”, esteio sem o qual nem capital nem trabalho poderiam manter-se vivos e saudáveis, quanto mais crescer (estado de bem-estar).

Os trabalhadores se aprisionavam na idéia de trabalho por toda a vida – “estabilidade”. Já os capitalistas se concentravam no intuito de preservar “fortuna familiar”, que duraria para todos, não só os atuais como também os descendentes da família. Esta era a mentalidade de “longo prazo” e de “interesse de todos”.

Após a Segunda Guerra, com o surgimento de sindicatos fortes, garantidores do estado de bem-estar, e corporações de larga escala, produz-se uma era de “estabilidade relativa”, em que continua a idéia de dependência mútua, mas agora através do confronto e teste de força entre as partes. Nenhuma delas podia continuar sozinha e ambos os lados sabiam que sua sobrevivência dependia de encontrar soluções que todos considerassem aceitáveis.

Essa situação mudou a mentalidade de “longo prazo” para a nova mentalidade de “curto prazo”. “Flexibilidade” tornou-se um imperativo, trabalhadores agora sabem que nada é certo e devem estar capacitados para novos desafios.

Muitos patrões, porém, parecem manter ainda uma mentalidade pré-Segunda Guerra. No comando de grandes empresas e fábricas, ainda há muitos seguidores daquilo que poderíamos chamar de “fordosofia”: quando o empregado é enxergado como um produto que produz com prazo de validade pra isso.

“Gosto bastante de trabalhar aqui”, diz o empregado a seus companheiros. “Tenho que rever o sistema, ele é pago para produzir, não para gostar”, imaginem quantos patrões ainda pensam assim por trás do vidro.

Daí a importância de os trabalhadores reconhecerem cada vez mais sua impotência individual, sabendo da necessidade de juntos poder barganhar melhores benefícios para todos, transformando regulamentos em direitos, reformulando-os como limitações impostas à liberdade de manobra dos empregadores.

Hoje em dia os trabalhadores não podem mais se sentir presos àquilo que “seu Ford mandar”.

22 de Outubro de 2009,

Ana Helena Tavares

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