Realizar para realizar-se

As expectativas de um jovem para o mercado de trabalho são geralmente enormes e de todos os tipos. Há quem sonhe com estabilidade, há quem queira fazer fortuna e há quem só pense em realização.

Realizar para realizar-se. Produzir sentindo-se produtivo. Assim deveria ser o dia-a-dia de um trabalhador. De que adianta sonhar com estabilidade e chegando ao mercado de trabalho cair numa rotina indigesta? Ou pra que fazer fortuna sem fazer algo que lhe faça feliz?

Há até, claro, quem simplesmente não tenha expectativas, uma perigosa filosofia no maior estilo deixa o trabalho me levar que “o que vier é lucro”. Também não pode ser por aí. Que lucro? Lucro pra quem? Será que para o trabalhador que chega em casa de cara amarrada porque não faz nada do que gosta seu salário é lucro? Será que, caso ele seja funcionário de algum local, é de fato lucrativo para o patrão dele ter ali alguém que não produz como deveria porque não consegue se envolver com aquilo que faz? E a sociedade o que lucra com isso?

Isso se aplica a qualquer profissão. Um médico insatisfeito com sua profissão terá dificuldades de sorrir para seus pacientes, que assim certamente terão mais dificuldades de se curar. Um jornalista que só saiba usar palavras ásperas há de estar na profissão errada. Um advogado que não defenda suas causas com paixão possivelmente deixará muitos inocentes na cadeia. Um professor de qualquer idade que, ao entrar em sala, não adquira a idade de seus alunos dificilmente conseguirá trocar experiências com eles. Um engenheiro que construa por construir poderá ver muita gente soterrada na sua areia. E até um pipoqueiro que não use o ingrediente amor contribuirá para amargar a boca de seus clientes.

O olhar de quem trabalha no que ama adoça os rostos ao redor, constrói uma vida sólida e faz do dia-a-dia um surpreendente troca-troca, onde as defesas, por serem sinceras, são feitas de forma extremamente intensa e palavras ponderadas acompanhadas de um sorriso são capazes de salvar vidas.

E por que salvam vidas? Porque quem encontrou um caminho para a satisfação profissional, irradia isso, torna-se espelho, exemplo num país de tantos jovens com tantas expectativas e muitas vezes tão poucas oportunidades. Mas aquele ou aqueles espelhos – quantos mais… melhor – podem representar renovação de ânimo.

Quando o trabalho é prazeroso não deveria ser assim chamado e se a grande esperança dos jovens fosse passar a vida sendo pagos pra brincar sério, certamente os divãs estariam bem mais vazios.

É difícil não cair na rotina? Praticamente impossível, ainda que haja inúmeras formas de temperá-la e, de vez em quando, de fugir ao menos um pouco dela. E é claro que todos nós precisamos de um salário digno para nos manter. Disse digno e, se possível, que traga algum conforto, fortuna prefiro deixar para os castelos.

Toda a minha expectativa está em trabalhar sem ter que usar muitas vezes este verbo.

22/08/08,

Ana Helena Ribeiro Tavares

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No Olimpo já se perdia ganhando

Midas, rei de Mushki (Frígia, norte da Ásia Menor), almejava o poder de com um simples toque transformar tudo em ouro. Certo dia conseguiu que seu desejo, supra-sumo da ambição, fosse atendido por Baco, um dos deuses do panteão olímpico, ligado ao vinho e supra-sumo da alegria.

Midas então se deitava num leito macio, sentindo-se confortável, e este logo se endurecia, causando-lhe sensação de incômodo. Mas não era ele que havia sonhado que tudo, inclusive aquele leito, transformasse-se em metal? Ah, sim, o ouro é um metal, e bem rijo em seu estado bruto. Alguém já viu metal com sentimentos? Midas também não… E esse foi seu grande desespero. Acariciava um ente querido, alguém que realmente amava, e como num passe de mágica surgia uma estátua dourada em sua frente. Estátuas não falam, não piscam o olho, nem sequer sentem cócegas… Que graça tinha aquilo? E, além disso, teve ainda outro sério problema… Pegava um pão ou qualquer outro alimento e logo se dava conta: como poderia comer ouro? Até as gotas de água em contato com seus lábios empedravam-se…

Com essa situação absolutamente insustentável, o rei Midas não demorou a procurar novamente Baco e, conta o mito, que o Olimpo poucas vezes presenciou um rei tão transtornado, implorando para que lhe fosse tirado um dom que se mostrava uma maldição. Ao ser novamente atendido, Midas abandonou seu palácio, passando a conviver modestamente em meio a camponeses e, reza a lenda, que a partir daí teria se transformado num dos reis mais alegres da região, pois só com essa perda havia conseguido obter a maior vitória de sua existência: a valorização do outro. Baco foi bacana com ele.

Transpondo isso para os dias atuais é possível se fazer inúmeros paralelos. No entanto, gostaria de relacionar a idéia de maneira específica aos Jogos Olímpicos ou, melhor dizendo, ao chamado espírito olímpico, nomes que afinal têm sua origem lá na Grécia antiga.

O que é mesmo vencer e perder numa Olimpíada? Será que naquela que tantas vezes se define como uma confraternização mundial através do esporte vencer se resume a uma medalha de ouro no peito? Não posso crer. E o judoca brasileiro João Schlittler que em plena quarta-de-final olímpica, com alto grau de miopia e na ausência de suas lentes, lutou quase cego, perdeu a luta e se despediu sem medalhas? Mas estava lá lutando mesmo tendo perda de visão. Onde ele fica nessa história? É um perdedor ou um vencedor? Por que será que provavelmente ele não vai ser recebido com um monte de bandeiras do Brasil no aeroporto? Porque o mundo em que vivemos sofre de um grau bem mais elevado de miopia…

Mesmo uma medalha de bronze pode fazer um atleta ser “olhado diferente” na Vila Olímpica, como o nadador brasileiro César Cielo diz ter acontecido com ele. Será que isso é bom? O que significaria mesmo esse “olhar diferente”? Admiração? Pode ser. Inveja? Em muitos casos. E se há inveja há derrota, de quem a sente. E essa é derrota mesmo.

E o que dizer do lutador sueco Ara que em vez de entender o bronze como uma vitória chegou ao ponto de tacar a medalha raivosamente no chão e retirar-se? Perdeu a luta e mesmo assim ganhou premiação. Perdeu a cabeça e não ganhou nada com isso.

Mas há quem já chegue às Olimpíadas tendo a certeza de que estar lá já é um momento de esplendor e que qualquer resultado alcançado já será uma grande vitória. É o caso da nadadora camaronesa Antoinette Guedia, de apenas 12 anos, que, ainda que extremamente longe de qualquer possibilidade de medalha e a anos-luz de qualquer recorde mundial, compete entre conhecidas atletas e é chamada de “campeã” pela delegação de seu país. “Estar aqui com a minha idade é incrível. É um pouco impressionante pra mim. Eu sou pequena.”, diz ela. Pequena, Antoinette? Pequena é a imprensa mundial que não dá o merecido destaque a estes grandes exemplos.

Exemplo de superação, determinação, garra, amor… De quem, apesar da pouca idade, talvez já tenha passado por muitas perdas, assistido a muitas perdas e com todas elas parece ter ganho mais vontade de viver. Ocorre que na maior parte das vezes em que levamos um baque isso nos traz sofrimento profundo naquele momento, mas em certos casos percebemos mais tarde que daquela forma foi melhor pra gente.

Não nego que a ambição quando dosada é importantíssima pra vida, é fundamental ter objetivos. O que não se pode é querer alcançá-los a qualquer custo, de forma inconseqüente e revoltando-se com o mundo a qualquer revés. Claro está, portanto, que não estou defendendo aqui que um atleta não deva almejar a conquista da medalha dourada, longe disso. Ele deve desejá-la sim, mas não deve, não pode, fazer desse anseio uma religião e da medalha um deus.

Se não corre o risco de, numa ironia de Baco, ser contemplado com o toque de Midas e, se for um nadador, quando pular na piscina baterá de cabeça no ouro.

Ana Helena Ribeiro Tavares
15 de agosto de 2008

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